O NATAL DOS ESCRAVOS
Se no passado a escravatura estava restrita a um espaço geográfico determinado, se era um produto como as especiarias ou o café e o açúcar, hoje tornou-se uma realidade à escala planetária, o produto mais desejado porque o mais barato, logo o mais rentável. Esta nova forma de escravatura, assentando essencialmente no silêncio e no voto por cabeça, reduziu a Democracia a uma quimera, um desejo longínquo.
Na sociedade esclavagista grega, a Democracia assentava na liberdade de expressão, na discussão dos assuntos públicos, donde o bom cidadão era aquele que se interessava politicamente pela vida da cidade. Quanto aos escravos, todos possuíam ouvido afinado e entendiam de tragédia, o que é normal pois ser escravo não significa ser surdo. No Império Romano, os escravos não podiam ser abatidos pelos donos, que tinham que os alimentar convenientemente. No sec. I a.C. o dono deixou de ter direito sobre a vida dos escravos, os maus tratos foram proíbidos e passaram a ser severamente castigados.
Nos tempos de hoje, vive-se o silêncio dos cidadãos e o livre pensamento tornou-se perigoso. Dizer o que pensa pode custar ao trabalhador o seu posto de trabalho, pode mesmo nunca mais vir a trabalhar e a acabar os seus dias debaixo da ponte. Pode até custar-lhe a permanência na religião, no grupo de amigos, porque, na realidade, ninguém quer dar-se com um marginal.
A agravar a situação, surge o fantasma da pobreza como um cancro, para os que estão relativamente seguros no seu posto de trabalho. O salário não chega num mundo de paradoxos, onde é criado o desconforto social por não se possuir determinado produto, de determinada marca, ou seja, o artifício do outro lado de uma marginalidade fantasiosa. A pobreza é um espectro negro num mundo cheio de produtos para todas as necessidades, e de religiões ao serviço das mesmas, as quais se apresentam cinicamente como entidades salvadoras de almas, de discursos que apelam à coragem, consequentemente ocas e ausentes de fraternidade.
Mensagens bonitas não faltam. Discursos apelativos ao bom entendimento entre todos os povos super-abundam, porém, cada uma pretende tirar para si o maior proveito do que a Natureza produz, enriquecer facilmente, fugir aos impostos, criar mecanismos tão complexos quão perigosos para subverter, subornar, dominar pela força e pela violência. As religiões são mestras neste tipo de coisas.
Ninguém pense que se acabaram as castas, a fidalguia ou os berços de oiro. Pelo contrário, eles estão cada vez mais em voga. As religiões precisam deles, precisam de ricos cada vez mais ricos e de pobres cada vez mais pobres. Os primeiros, para as alimentarem, manterem os seus dignatários, que vivem sem trabalhar, sob o pretexto de cumprirem missões, nomeadamente a pregação do Reino de Deus; os segundos, para manterem debaixo da sua alçada, os pobrezinhos, coitadinhos, que escaldam com uma tijela de sopa tépida.
Os empregos mais destacados, por exemplo, pivots da TV, apresentadores, directores de fundações, dirigentes de instituições de caridade, só para citar alguns, são entregues a quem tem nome sonante, apelido vistoso na praça, e a quem está destacado para “trabalhar” nesses métodos obscuros de caridade. Quanto ao emprego, a competência não é o factor decisivo, isso só é importante para algum empresário honesto, ou para algum potencial candidato a um posto de trabalho onde apenas pretende ganhar o salário que lhe dê de comer, uma vez que ir além disso já é um luxo.
E assim caminhamos, num mundo que se tornou estreito, um lugar apertado onde só entram dois tipos de pessoas: os que mandam e os que obedecem. Os primeiros, felizes com a ilusão do poder, os segundos, felizes com a ilusão do pão garantido. Os primeiros dizem como se faz, os segundos aprendam a ideologia dominante ditada pelos primeiros: ausência de família, desprezo pelos valores tais como dignidade, verdade, sinceridade, altruísmo; desrespeito pelos mais velhos e pela vivência de que são portadores, sobrevaloração dos mais novos que, não tendo as referências destes, aprendem o servilismo, sem de tal se darem conta; minimização da própria identidade em prol do serviço à casta dominante, aos filhos d´algo, ao luxo esmagador.
Neste aspecto, somos todos carrascos dos valores, da liberdade que deixou de ser a coroa da glória, da política que já não é palavra, mas número, da lei que já não educa, prisioneira da corrupção. Já lá vão os tempos da ágora de Atenas, do cidadão empenhado e politizado. Vivemos a segregação, as dualidades redutoras, os sistemas binários cheios de clivagens. Falamos de ricos e pobres? Não. Falamos de multimilionários e de miseráveis, do desperdício e da ausência, de grandes mentiras e de verdades quase microscópicas, ou antes, caleidoscópicas.
Onde estão as grandes mensagens dos profetas de todos os grupos religiosos? Caíram no vazio, convertidas em histórias para adormecer, outras nem isso; algumas no inconsciente colectivo dos povos, no saudosismo do respeito pelo outro, enquanto representante e portador de humanidade e de Deus e da sua mesma individualidade.
Vítimas e simultaneamente produtoras de esteriótipos, as religiões perderam o combóio da salvação das almas, chumbaram no seu trabalho missionário porque deixaram-se arrastar pela ganância, pelas honrarias mundanas contra as quais tanto alertaram os profetas. Jesus não foi excepção ao referir os sepulcros caiados por fora, aos primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes, a voragem das casas das viúvas, as preces vistosas, em público, as longas vestes, o muito dizer Senhor, Senhor, etc. As religiões já não recorrem aos profetas, abdicaram deles. Elas usam-nos como um paramento bonito e nada mais.
Não é o Natal cristão que está em crise. São os natais de todas as religiões, dos seus profetas tão sábios quanto humildes, dos grandes mensageiros do Divino, da dessacralização da Natureza e da Vida. Perderam-se os natais dos corações, das famílias, que se desmembraram. Vivemos cada vez mais o natal que nos querem impor, o natal dos outros; vivemos uma fé que não é a nossa, uma espiritualidade fragmentada, comprada, importada. E se é verdade que crescemos por meio de contágios, não é menos verdade que deve ser cada um a escolher, a dissecar o que lhe é proveitoso do que lhe é dispensável.
Tirem-nos tudo, mas não nos deixem orfãos. Dêem-nos de novo as nossas famílias, queremos os nossos filhos, queremos orar pelos nossos antepassados, queremos viver com os nossos vivos e os nossos mortos. Queremos as nossas raízes, as nossas referências, o nosso curriculum vitae que constitui a nossa história pessoal e divina. Porque nos tiram isso? É fácil de perceber: uma família unida é a maior força social que existe, psicológica, política, religiosa e economicamente. Um escravo não tem direito à família.
Aprender a ser livre é a grande história da nossa História. O problema é que, desta vez, somos nós os agentes da nossa mesma escravatura, os grilhões e a condenação às galés são o resultado dos braços cruzados, da falta de coragem para dizer que crescer para a liberdade é também uma questão da fé, da relação com Deus, do modo como O vivenciamos na nossa História. Não podemos deixar que a caravela se afunde no desespero da pobreza. Lembremo-nos que, desta vez, até os ricos são escravos.
A ambição criou a desvaloração da família, espalhando as heranças ao mesmo tempo que a transmissão da fé de pais a filhos. Perdeu-se a noção de que família e fé acompanham-se como realidades identitárias, formas de ajuste de um passado mais ou menos remoto, conquistas de perdão que estavam relativamente adiadas, como defende o Espiritismo. A sociedade não pode ser um aviário produtor de géneros humanos preparados para o consumo. Os principais elementos salvíficos, família e fé, são as bases da História, o móbil de uma trama milenar.
Não queremos estar calibrados, nem em termos de religião, de fé, de família nem de profissão. Dispensamos a moldagem e o fabrico em série de personalidades quais autênticas máscaras. Por outras palavras, não quero que pensem por mim, que escolham a minha fé, nem quero outra noção de família que não a minha, nem o posto de trabalho através de subjugação. Perdendo a sua herança material e espiritual, o homem vive a sua nudez, e perdendo a noção de família deixa de ter herdeiros de bens e de fé. Naufraga.
Já não andamos à descoberta de novas terras, nem de outros mundos. Nunca se falou tanto nem tão abertamente de Espíritos como nos dias que correm, mas não é por isso que estamos melhor colocados na relação com eles. Até o mundo do Além nunca foi tão perpetrado, por isso nunca nos enganou tanto como hoje.
Até as grandes máximas dos Espíritos Mensageiros são banalizadas. O que nos ensinaram os Vedas com as suas normas de conduta sob todos os aspectos da vida, o Tibete por meio de meditações e manuseamento de plantas e terras argilosas, os Egípcios com as Matemáticas e Geometria, e Pitágoras, e Sócrates, e Platão, só para citar alguns, todos tão caros ao mundo em geral, e à Doutrina Espírita, em particular. O legado de que somos herdeiros, como por exemplo a fé inabalável que os caracterizava, a importância que era conferida ao simples facto de sermos humanos, o que para todos significava relação com o Divino, apresentando o homem como o ser de consciência dos seus deveres para com a Natureza e o seu Criador.
Penso que até os Espíritos devem sentir o peso da banalização e do escárnio; também eles devem sentir a avidez de uma boa comunicação, um simples acto de fé, um pensamento cujo objectivo seja Deus. Ser Espírito, protector ou missionário, nos tempos que correm deve ser muito difícil. Não lhes queria a pele, ou melhor, o envoltório.
As novas religiões e com elas as novas formas de religiosidade, bem como as tentativas de adaptação das mais antigas à realidade de hoje falham porque não conseguem impor-se nem como alternativas nem como prolongamento dos discursos dos profetas da Antiguidade. As novas formas de viver a fé mais não são que meras reinterpretações que convidam a um reviver, retomar, reproduzir.
A nova vinda do Messias, ou a sua primeira vinda, como defendem os nossos irmãos Judeus (nós, cristãos, também o somos, de alguma forma, pois somos seguidores de um judeu exemplar), requer uma preparação que ainda não temos (ninguém melhor que os Judeus percebeu o peso dessa responsabilidade). O Natal que já veio, o Natal da segunda vinda, em grande apoteose, e o que está para vir são semelhantes. Todos requerem preparação, espiritualidade emancipada, fé libertadora.
Quanto a nós, cristãos, para quem o Messias já veio e está para voltar, como defendem alguns, que Messias pregamos? O Cristo libertador que celebramos no Natal é o Messias da redenção, do perdão das ofensas? Entedemos a sua mensagem como um discurso universal, dirigido a todos os povos, independentemente das suas formas de crença?
O Natal é um aniversário que celebra o grande libertador, confrontando-nos simultaneamente com o peso da responsabilidade de sermos portadores de uma mensagem de Vida Eterna. Mas também nos culpabiliza por enchermos as caixas de esmolas, libertarmo-nos dos farrapos que já não queremos, doarmos 1 Kg de arroz ou de massa aos pobrezinhos, que nesta quadra são mais importantes para a limpeza das consciências (o que seria de muitas sem pobrezinhos?), a catarxe da alma.
O Espiritismo tem a nobre missão de cortar com esta realidade. A caridade só é salvação quando feita com amor e associada a uma vivência purificadora.
Urge perceber o Natal como uma universalidade da fé. O Deus dos Hebreus presenteou-nos com mais um profeta que representa uma prova material, mais uma, da Sua existência junto do Homem. Cada Natal é um lembrete de que não estamos sós, e que encarnar, além de ser o cumprimento de um dever, é essencialmente missão.
Margarida Azevedo