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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Fritz ante a preguiça moral, a balela e a promessa de artificiosa cura (Jorge Hessen)




A atriz Juliana Paes da Globo vai aparecer nos cinemas em 2020, junto com o ator Danton Mello e outros, no longa-metragem intitulado “Predestinado - Arigó e o Espírito do Dr. Fritz”. O filme propõe contar a história do médium mineiro, José Pedro de Freitas, o “Zé Arigó”. Com certeza tal evento fará ressurgir, nas hostes espíritas, o deslumbramento pela procura de médiuns incorporadores de “cirurgiões” cura tudo ou miraculosos “médicos” do além.
Que existe interferência dos desencarnados nos processos terapêuticos na Terra não há dúvida, porém não se pode dar proeminência a esse tipo de fenômeno, na presunção de consolar os desprotegidos ou na ardilosa ideia de fortalecimento da difusão do Espiritismo por essas dispensáveis práticas.
Vejamos: Zé Arigó, o médium que incorporava o Dr. Fritz e realizava cirurgias sem anestesia, certa ocasião ofereceu-se para operar o Chico Xavier, que prontamente rejeitou a oferta e optou por se internar em hospital de São Paulo. A atitude do Chico provocou uma boa discussão na época.
Por que não aceitou a oferta do Dr. Fritz? Chico duvidava do poder dos famosos “cirurgiões” espirituais?
O filho de Pedro Leopoldo se limitou a repetir a resposta oferecida em 1969 a Zé Arigó: “Como eu ficaria diante de tanto sofredor que me procura e que vai a caminho do bisturi, como o boi para o matadouro? E eu vou querer facilidades? Eu tenho que me operem como os outros, sofrendo como eles.” [1]
Anos mais tarde, sob firme depoimento, Chico Xavier pronunciou: “Sou contra essa história de meter o canivete no corpo dos outros sem ser médico. O médico estudou bastante anatomia, patologia e, por isso, está habilitado a fazer uma cirurgia. Por que eu, sendo médium, vou agora pegar uma faca e abrir o corpo de um cristão sem ser considerado um criminoso? [2]
A tendência de subestimar a contribuição da medicina terrena, entregando nossas enfermidades aos Espíritos “milagreiros” do além (com nome germânico ou hindu), para que "curem" complexos processos de metástases, por exemplo, é uma atitude equivocada. Até mesmo porque, os Espíritos não estão à nossa disposição para promover curas de patologias que não raro representam providências corretivas para o nosso crescimento espiritual no buril expiatório.
Além do mais, os princípios doutrinários nos elucidam que necessitamos "Aproveitar a moléstia como período de lições, sobretudo como tempo de aplicação de valores alusivos à convicção religiosa. A enfermidade pode ser considerada por termômetro da fé”. [3]
Como bem recomenda Allan Kardec, em Viagem Espírita, 1862, pág. 33: "O exagero em tudo é prejudicial, mas, em semelhante caso, vale mais pecar por excesso de prudência do que por excesso de confiança". [4]
Sobre esse tipo de mediunidade fica evidente que não há qualquer amparo espiritual aos médiuns dos cirurgiões do além. Vejamos alguns fatos emblemáticos sobre os intermediários do tal Dr. Fritz e outros do ramo. José Arigó, o mais famoso, desencarnou tragicamente num acidente de automóvel, em MG; Rubens de Farias, depois que sua esposa o denunciou de adultério e enriquecimento ilícito, saiu terminantemente de cena; Edson Queiroz foi brutalmente morto a facadas por seu caseiro, em Recife; João de Deus jaz prisioneiro na penitenciária de Aparecida de Goiás, incriminado por centenas de estupros e enriquecimento  ilícito. Isso sem colocar aqui no inventário sobre esse tipo de mediunidade “curadora” o mais importante médium do Lar Frei Luiz no Rio, Gilberto Arruda, que foi assassinado dentro do centro.
O exercício dos Códigos Evangélicos nos impõe a obrigatória fraternidade e a compreensão aos adoentados e adeptos dessas extravagantes práticas mediúnicas, o que não equivale dizer que devemos nos silenciar quanto à adequada recriminação. Tal mediunidade não é e nunca será indispensável para propagação dos princípios espíritas. Além do mais, o centro espírita não pode se transformar em abrigo dos ambulantes cura tudo.
Bem-estar e saúde integral são obtidos através do cumprimento das Leis Divinas inscritas na consciência de todos nós! O resto é preguiça moral, balela e promessa de artificiosa cura que se transformará em desafiadora moléstia moral amanhã.

Referência bibliográfica:
[1]        SOUTO Maior, Marcel. As vidas de Chico Xavier / MARCEL Souto Maior. 2. cd. rev. e ampl. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003
[2]        Idem
[3]        VIEIRA, Waldo. Conduta Espírita, Ditado pelo Espírito André Luiz, Cap.35. RJ: Editora FEB, 1977-5ª edição
[4]        KARDEC, Allan. Viagem Espírita 1862, pág. 33, RJ:  Ed FEB, 1999



terça-feira, 12 de novembro de 2019

UM DEUS VERDE



Margarida Azevedo
(Portugal)

O homem do séc.XXI, confrontado com as vantagens da tecnologia, que não só lhe torna a vida mais fácil como está ao serviço de todos, isto é, não é propriedade de uma classe privilegiada (o telemóvel do presidente da república é igual ao do motorista), leva, inevitavelmente, à reflexão de que se o homem atingiu este patamar de conforto pelos seus próprios meios, se foi capaz de através da tecnologia aproximar classes sociais, qual a dádiva de Deus para o homem? Dito de outro modo, qual o bem em nós que é, exclusivamente, proveniente de Deus? Ou o que é que Deus nos dá que seja superior a isto?
Por outro lado, talvez ao arrepio do que era de  esperar, a tecnologia não conseguiu afastar o homem de Deus. Pelo contrário, há um resíduo de insatisfação que não é possível colmatar tecnologicamente. As dores da alma são idênticas desde sempre e vão muito para além da luta pela sobrevivência, a defesa de pertences, as lutas pela melhoria das condições de vida. O ser humano é, por natureza, insaciável, problemático, detesta sentir-se só no mundo, muito embora esse mundo o assuste. O olhar para o céu e admirá-lo, deliciar-se com o incomensurável, ou passear o olhar pelos campos e assistir ao acontecer da natureza sempre foram o móbil para êxtases, sensações estranhas, delírios ou visitas a outras realidades. É o fenoménico a fazer despertar para outros sentidos da vida, fazendo-o curvar-se na ânsia de superar o “medo do escuro”.
Assim, aquilo que denominamos fé, cuja natureza desconhecemos, é absoluto, a priorista, ou pelo contrário, existe porque há um delírio ou uma tontura provocados pelas forças da vida natural e cósmica, na sucessão infinita de fenómenos a que estamos inevitavelmente submetidos? Parece que a explicação da primeira não está propriamente ao nosso alcance, porque vivemos o desajuste ou a impossibilidade de puro pensamento; a segunda retrata-nos como portadores de uma fé como ímpeto de espanto. Porém, quer num caso quer noutro há fé, fé sobre a qual é de capital importância reflectir.
Vejamos. Perdeu sentido, tornou-se uma incoerência, a conquista do reino de Deus segundo parâmetros de austeridade, sacrifícios, abstinências; hoje, isso toca as raias do fanatismo, retrata mesquinhez espiritual, apouca a presença do Divino no homem, consequentemente, prática inglória e estéril; por outro lado, longe vão os tempos da extensão dos rituais e cultos dos templos ao lar, em estreita contiguidade, com fim à pureza e recíprocas vantagens no céu. Tal uso ficou reduzido a alguns resistentes mais ortodoxos, e às religiões da natureza cuja teologia ganha terreno. E porquê?
Porque o conceito de natureza como terra, planeta, vida, casa, lar, família, enfim, subiu ao podium. Ele estende o sentido de crime vs castigo a tudo quanto existe: queimar uma floresta ou tratar mal um animal está tão sujeito a castigo divino como um crime contra  os haveres do outro, a violência doméstica, etc. “Deus não gosta que atentem contra a Sua obra.”, é o que mais se ouve.
Fé e ecologia é um binómio que as Religiões do Livro têm que levar a sério. A ecologia sobrepôs-se a tudo e a todos. O lar já não é uma casa da família, é também um lugar ecológico; o templo é um espaço onde se ensina e amar a Deus, o próximo e a nautreza, e, por isso, tem o dever pedagógico de sensibilizar para a vida espiritual num sentido abrangente. Hoje, toda a gente critica quem muito bate com a mão no peito, mas não sabe tratar do cão. Já não é possível amar a Deus sem amar a natureza por Ele criada, donde a boa prática ecológica faz parte do estatuto do humano como ser religioso. Lembra-te, Israel, que te tirei da terra do Egipto, da terra da servidão, não adorarás outros deuses além de Mim, não farás nem adorarás figuras, já não chega; amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, já não basta. Hoje, dir-se-ia: “Lembra-te, que além de Mim e do teu próximo, tens que amar a Natureza magnífica, os rios e os oceanos, tudo o que existe no fundo do mar, na terra e tudo o que voa pelos céus. Quando orares, agradece em primeiro lugar o ar que respiras, a água que bebes, os alimentos que te saciam.”  
A crise da história e da racionalidade do homem moderno, provocadas pelo desgaste social, traça um caminho para Deus baseado na desolação, não já no pecado enquanto uma falta moral. De tanto querer impôr-se à natureza, o homem sente que lhe perdeu o pulso, assume os desastres naturais como responsabilidade sua, em resultado de más práticas, e teme o desmoronar da vida. Mais temível do que a pena moral de Deus, o castigo divino pelas intrigas palacianas que tantas guerras fizeram, por interesses energéticos, pelos mais cínicos interesses que tantas mortes causaram, o que o homem mais teme é a reacção dos Elementos, as catástrofes naturais, ainda que possa dizer que, no fundo, ambas tenham a mesma origem, divina, a segunda é bem mais temida.
 Esta concepção esverdeada de pecado, inevitável face ao estado degradante a que o planeta chegou, pela mão do homem e pela ambição doentia, é ponto de charneira para a emergência de uma nova relação com Deus. Pensar o futuro é reflectir numa nova forma de vida, um novo conceito de felicidade baseado na partilha, não apenas com o próximo, mas também em conformidade com os rios e os oceanos, as florestas e a fauna, respeitando-os e amando-os enquanto autónomos e como fazendo parte do mesmo planeta e de nós mesmos.
Assim sendo, o pecado é alteridade do bem, da paz, do respeito e do amor; voz, não já da nossa natural ignorância, mas a ousadia do querer sobrepor-se à Criação (que é tudo, humano e não humano). O homem  continua a ser o grande desconhecido para si mesmo, não há dúvida. Falar de Deus e de si próprio perde-se. Mas isso não significa que faça do bem uma quimera, uma construção longe da vida terreal. Não pode destruir e destruir-se, alegando que só no outro mundo e mum momento fora da História é que é possível ser feliz. Pelo contrário, o bem é o conjunto de acções e pensamentos conduzentes à felicidade individual e colectiva. O bem é sempre viável não impossível. Felicidade e bem são parceiros na conquista do inefável, quem sabe, dos salutares delírios.  São  caminhos, não o próprio Deus. Deus é inqualificável. O pecado conduziu-nos até aqui. A tomadade consciência da desolação dá lugar à esperança.
A nossa vivência religiosa problematiza esta concepção de bem: ou porque o homem está a pagar uma dívida muito cara a Deus, contraída sabe-se lá onde e quando (ou “quandos”), pouco se importando com as implicações espirituais e religiosas de uma tal posição que, espremida, é vagainespecífica e uma resultante da subversão da fé a um passado nebuloso; ou porque vivemos tempos apocalípticos, (todas as épocas tiveram os seus apocalipses, a de Jesus foi uma delas), com a consequente esperança de um líder messiânico libertador e justiceiro. São disso exemplo os novos grupos religiosos que vão surgindo diariamente, ou por dissidência dos já existentes ou novos de raíz, de políticos quais salvadores da pátria e exemplos de fé, com grande moral e cheios de bons costumes, de boa vontade e munidos de belos discursos, que prometem pôr tudo na ordem enquanto o diabo esfrega um olho. Não faltam por aí messias: grupos, indivíduos, partidos políticos, religiões, máximas, preceitos, enfim. Apetece perguntar: qual é o líder que, hoje, não é messias?
O homem moderno mais crítico e mais atento, obviamente opõe-se-lhe, porque está  numa relação de proximidade com Deus do tipo “tu cá, tu lá”; o “Pai Nosso” já não diz “vós”, mas “tu”. Para Deus está reservada uma conversa de alma aberta. Deus está aqui e agora, trespassa os pensamentos;  não está longe nem se esconde, não quer ser desconhecido, relativiza-se na nossa humanidade; cultua-se não somente no templo, mas na natureza porque Ele é Vida. O culto é  um encontro social da fé e uma teatralização de um tempo longínquo, gerador de um sentido que é sempre novo. Cultuar é curvar-se em oração numa ritualística toda memória. A noção de eterno começa aí: a perpetuação de um acontecimento marcante na história, ponto de charneira de uma viragem que mudou o rumo de um povo ou uma nação. Todos os povos são portadores de algo que jamais poderá morrer: um conjunto de factos onde se encontram a História e a Fé.
A memória é uma força da fé na medida em que o apresenta facto histórico como uma vontade de Deus como Ser libertador. Por ela, Deus continua tão participativo como outrora. Por isso, o homem moderno dispensa o passado culpabilizador, seja ele qual for, como for, onde for. É do futuro que ele se ocupa. O que está morto, destruído, disso já não passa. Agora interessa saber o que pode construir, ou melhor, co-construir com o seu Criador. Para quê pensar em culpa, destruição, falta, erro? Já não se trata apenas da nossa História Humana, também da História Natural.
Quanto à fé, transfigurou-se, porque o homem é ele mesmo um ser transfigurado, uma caricatura do que já foi. A palavra da oração é outra, amadureceu, mantendo-se, no entanto, manifestação da transcendência na imanência. A mesma palavra diz e desdiz, chora e sorri, é de cá e de lá, tem força e fraqueza, tem pecado e …, tem natureza e história.
É facto que a fé assumiu, mais do que nunca, o seu duplo papel: religioso e cultural. Mas ainda é mais verdade que se tornou tripla: religiosa, cultural e natural. O reino de Deus já não está num céu azul, mas aqui e agora, ecologicamente.
Por meio da fé, todas as coisas são novas todos os dias, porque todos os dias são novos, singulares e únicos. A natureza, no seu aparente eterno retorno, é uma novidade constante; uma força renovadora qual horizonte de esperança e de liberdade. O homem moderno não pode perder esse horizonte: amar a Deus, o Próximo como a si mesmo e à Natureza, acima de todas as coisas, bem, já não vale a pena dizê-lo porque isso é todas as coisas (o que há mais além de Deus, o outro e todas as coisas?). A grande fé é amor.


quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ESPINHO NA CARNE. INFANCIA-ADOLESCENCIA-VULNERABILIDADE SOCIAL


Luiz Carlos Formiga

                                                                                        
"JR é hemofílico. Contundiu-se em um jogo de futebol. Pai analfabeto, desempregado, não tem recursos para a medicação indicada. JR foi ao hemocentro que atende hemofílicos. A internação deixou-o nervoso. O estresse prejudica o processo de coagulação. Piorou, a ponto de sangrar em vários pontos do corpo. Os cuidados de enfermagem tiveram que ser constantes. Ele também está infectado pelo vírus da AIDS.
 Isolado, sozinho e com saudades passou a ter comportamento difícil, recusando a medicação, grita com médicos e enfermeiras. Tornou-se problema.
No entanto, não é um paciente problema, mas uma criança que está sofrendo, que quer levar uma vida normal, ir para casa e brincar.
JR não sabe que tem AIDS.  Seu estado emocional não permite que seja informado. Se ele não entende por que tem hemofilia, como explicar-lhe por que tem AIDS? JR tem, apenas, 11 anos."
Em 1977, quarenta anos atrás, fiquei estupefato lendo a Revista de Pediatria (vol. 43).
Um artigo relata 21 casos de tentativas de suicídio em crianças, 9 a 14 anos, por ingestão de produtos químicos. Ainda hoje trago o espinho na carne.
Após o atendimento médico, foi feito estudo das condições e circunstâncias sociais/familiares que pudessem estar relacionadas direta ou indiretamente com o evento, e ainda uma análise dos fatores que pudessem permitir a distinção entre a encenação suicida e a verdadeira tentativa.
Dentre os fatores sociais/familiares relacionados com a tentativa e as circunstâncias precipitantes, destacam-se o alcoolismo dos pais em 6; mau relacionamento em 5, e a ausência em 3. Como precipitante - desavença familiar.
Em 13 casos as mães tinham atividades profissionais diurnas fora de casa e, usualmente, seus filhos menores ficavam apenas na vigilância do mais velho. Em 14 casos, o número de irmãos variava de 4 a 8 e em apenas um caso foi encontrado filho único.
Os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) são as principais instituições públicas de saúde a oferecer atenção diária a crianças e adolescentes que demandam cuidados em saúde mental. Nesses Centros, os profissionais são mobilizados para casos de uso abusivo de álcool/drogas, autismo e outros transtornos.
O trabalho com os familiares pode se tonar um dos maiores desafios, porque são pessoas carregadas de angústia, buscando respostas para os sintomas, tratamento e acolhimento dos filhos. Por outro lado, elas também sentem muita dificuldade em lidar com a doença dos filhos.
Os profissionais de saúde terão que ajudá-los a exercerem suas funções de cuidado, e, ainda, resistir à vontade de assumir os seus lugares. Faz-se necessário um trabalho clínico para que estes desenvolvam ou resgatem capacidades maternas e paternas.
Crianças e adolescentes que fazem uso de drogas lícitas ou ilícitas, nos dias de hoje, transformaram-se numa questão de extrema gravidade, fazendo emergir a angústia dos profissionais que os atendem e os posicionamentos polêmicos que envolvem o assunto. Manter um adolescente usuário de drogas em tratamento com outros casos e faixas etárias distintas implica para a equipe uma série de dúvidas relacionadas ao manejo adequado e à relação desses sujeitos com os demais pacientes.
Sentindo-se impotente, essas equipes ainda podem se sentir sem as possibilidades de contar com outros setores para o cuidado desses casos difíceis e podem se aprisionar em discussões e queixas repetidas.
O autismo é outro grande desafio para a prática clínica onde os profissionais compartilham também muitas dúvidas sobre a forma de intervenção, condução do tratamento, além de incômodo diante da angústia dos familiares, que sempre buscam respostas e resultados rápidos. (1)
Aos desafios acima, podemos somar a questão do prazo de validade da atual definição de saúde que é utópica e já ultrapassada, na visão de alguns profissionais de saúde. Dizem que ela visa uma “perfeição” inatingível separando o físico, o mental e o social. Não se pode fazer a clivagem entre mente e soma, “devendo-se tratar o doente e não a doença”.
Temos ainda que pensar que as injunções sociais atuam no aparato complexo que é o sujeito. O estilo e o ritmo de vida imposto pela cultura e a modalidade da organização do trabalho, podem impedir o trabalhador de manter seu funcionamento mental pleno. A vida, nas metrópoles, aponta na direção de uma unidade “sócio-psicossomática”.
Será que no futuro estaremos concordando com Segre & Ferraz, que sugerem que “saúde é um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade”? (2)
Na Ética das Virtudes buscava-se “O Caminho do Meio”. Depois, com a Ética do Amor, aprendemos a “fazer ao outro o que gostaríamos que o outro nos fizesse”.
Estamos diante de uma ética transdisciplinar, aquela que não recusa o diálogo, a discussão, seja qual for sua origem – de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica.
Existem inteligências diversas, as mais conhecidas são a cognitiva e a emocional. No entanto, a espiritual é a que parece representar o mais expressivo grau de inteligência. Nesta, as ligações neuronais alcançariam posições bastante complexas, com ativa participação da base cerebral, zona do conhecido lobo límbico. Este modelo participaria das criações psicológicas, onde a intuição representaria a mola mestra do processo.
Inteligência emocional fala de emoções, a espiritual fala da alma. A espiritual tem a ver com o que algo significa para mim e não apenas como as coisas afetam minha emoção e como reajo. Na fase evolutiva em que nos encontramos a inteligência espiritual coletiva é baixa na sociedade moderna. Vivemos numa cultura espiritualmente estúpida.
Umas síntese arriscada, a cognição nos capacita a achar caminhos e identificar as melhores rotas. A afetividade nos ajuda a escolher a melhor. A inteligência espiritual nos oferece a certeza na escolha.
Bill recostou-se na cadeira alta e contou.
“Nós moramos no bairro judeu, em Varsóvia, começou ele, pausadamente.
Moramos lá, minha esposa, nossas duas filhas e nossos três garotos. Quando os alemães chegaram á nossa rua alinharam a todos contra o muro e abriram fogo com as metralhadoras. Supliquei para morrer com a minha família, mas, porque falava alemão, eles me botaram num grupo de trabalho.
Fez uma pausa, talvez revendo esposa e cinco filhos. 
Eu tinha de decidir no ato se passava a odiar os soldados que tinham feito aquilo.
Era, realmente, uma decisão fácil.
Eu era advogado. Minha prática, com frequência, me havia mostrado o que o ódio podia fazer às pessoas, de corpo e mente. Aliás, fora o ódio que acabara de matar as seis pessoas que me eram mais importantes no mundo.
Decidi então que, fosse qual fosse o tempo que me sobrasse de vida, iria empregá-lo no amor a todo o ser, com que viesse a entrar em contato."

Leia mais
1.   Oliveira, A.C.B & Miranda, L. 2015. Práticas clínicas e o cuidado possível no CAPSi: perspectivas de uma equipe interdisciplinar. Acesso em novembro de 2019. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822015000100011
2.   Segre, M. &  Ferraz, F.C. 1997. O conceito de saúde. Ponto de Vista. Rev. Saúde Pública, 31 (5): 538- 542. São Paulo. SP. Acesso em novembro 2019.