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quinta-feira, 25 de março de 2021

Liberdade ainda que tardia

Por Jane Maiolo

“Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança, desde que me tornei homem, eliminei as coisas de crianças” [1]

A páscoa é uma tradição religiosa, cujas raízes têm suas origens no Judaísmo, sendo posteriormente absorvida pelo Cristianismo, sofrendo ao longo das eras profundas adulterações, mormente nos tempos modernos.

O clima de reverência ao sagrado e ao espiritual foi substituído pela a imagem de um coelhinho, branquinho que nos distrai nos com seus ovinhos coloridos, trazendo-nos a doçura do chocolate e nos afastando em definitivo do verdadeiro sentido da celebração primordial.

A páscoa é uma comemoração do povo judeu, lembrando a libertação do cativeiro a que foram submetidos por 400 anos, pelos egípcios, ou seja, é uma celebração de reconhecimento e gratidão a Deus pela libertação do cativeiro.

Sem dúvida a celebração da páscoa faz parte de todo um universo religioso, principalmente se considerarmos sua origem, seus significados e a experiência vivenciada numa determinada época pelo povo judeu. A religiosidade que marcou aquele período da história ficou indelevelmente registrada no psiquismo de toda cultura judaica, rica de símbolos e metáforas a fim de se conservar a essência espiritual do acontecimento.

Páscoa mais que celebração pela libertação significa Vida, ou seja, chance de recomeçar a viver livremente sem prender-se a estreiteza dos sentimentos, daí toda a recomendação judaica de se adotar por uma semana, como componente da casa, um cordeiro, e se afeiçoar a ele, pois, esse cordeiro, será sacrificado para “salvar” o grupo doméstico, e essa experiência será uma experiência mesclada pela dor, perda e desilusão, aprendizado que os levariam a caminhos de libertação dos sentimentos. [2]

Entretanto, com a vinda do próprio Mestre Galileu ao planeta, Ele aceita o título de Cordeiro de Deus, como propagou o Batista: E, vendo passar a Jesus, disse: Eis aqui o Cordeiro de Deus” [3] e convive não apenas uma semana, porém, por três anos, afeiçoando-se aos discípulos, tendo compaixão da multidão sofrida, alterando o rumo das existências dos cegos, mancos, leprosos, surdos, e dos pobres que foram enriquecidos pelas luzes da Boa Nova.

Transcorridos os três anos de ministério junto do povo padecente o Cordeiro anuncia a despedida, pois a Páscoa se aproximava e Ele seria imolado a benefício de todos. Ele retornaria para as culminâncias divinas e os discípulos experimentariam uma dor superlativa, pois se afeiçoaram de tal forma a Ele que a notícia da ausência física do Mestre lhes provocaria dores inenarráveis. Os laços afetivos se tornaram tão intensos que Jesus já não mais o chamavam de servos, mais sim, amigos. Jesus os amou de tal forma que não mais importavam seus defeitos, suas defecções, suas fragilidades ou suas pusilanimidades. Era o Amor amando sem exigir. Todavia, era o Amor ensinando aos amados a passarem por períodos de testemunhos cruciais. Era o Cordeiro ensinando que a Páscoa era o símbolo da libertação da escravidão da matéria. Era preciso transcender e compreender a dimensão espiritual dessa data. Era preciso ser adulto e agir como adulto e não mais como crianças espirituais.

O Espiritismo, na condição de Cristianismo redivivo, tendo por princípio a libertação do jugo da matéria e a reforma íntima pela conscientização que o Evangelho proporciona, não possui compromisso com as tradições da páscoa mundana ou qualquer outra tradição. O compromisso do Espiritismo é reviver os princípios amorosos e restauradores que Jesus nos ensinou e despertar em nós o sentimento de gratidão à liberdade e à vida.

Infelizmente temos nos afastado das verdades imortais e dos exemplos de liberdade e de renovação nos escravizando a ilusão da matéria, trocando o real pelo doce, prazeroso e ilusório. A páscoa é momento de reflexão. Ouçamos nos recessos da consciência o recado de Paulo quando narra: “Não escrevo estas coisas para vos envergonhar; mas admoesto-vos como meus filhos amados.” [4] É sempre tempo de refletir e mudar rumos da nossa existência.

Referências bibliográficas:

[1]            1Cor 13:11

[2]           Êxodo 12:1 

[3]           João 1:36

[4]           1 Cor 4:1


O vírus da exaustão

Por Jane Maiolo


 
A presença do covid-19 ou vírus SARS COV -2 revelou incontáveis chagas que a humanidade mascarou e encobriu ao longo dos anos, dentre elas: a desigualdade social, a instabilidade psíquica do homem contemporâneo, a banalização do mal, a polarização política que vivemos no dia a dia, a arena das desilusões e conflitos que se tornaram as redes sociais, a ganância do homem capitalista, o modelo político que à muito dá mostras de sua ruína e desprestígio, dentre outras.

 Freud em Obras completas, v.XVII diz que “o homem não é senhor na sua própria casa” afirmando nossa pacifica condição de seduzidos e escravos dos padrões estabelecidos e massificados pela nova ordem mundial que é a sociedade do consumo e do desempenho. Ao mesmo tempo gritamos, bradamos pela liberdade de ser, fazer, existir e realizar. Porém, o pensar parece uma ação que desejamos terceirizar, permitindo o tempo todo que pensem por nós.

O vírus da exaustão, tomou conta do mundo, nós consumimos em excesso, trabalhamos em excesso, nos aliciamos em excesso. Nos aprisionamos a um comportamento sem reflexão. Entretanto, nos sentimos cansados, exauridos, fracassados, falidos. Nos tornamos uma comunidade global que reproduz os mesmos males, dores, aflições e sintomas, onde não existe mais limite entre público e privado. Tornamo-nos públicos sem nos darmos conta que o teletrabalho, o home Office, as videoconferências, o atendimento online, transformou-se num vírus letal fazendo-nos servidores 24 horas. Respondemos WhatsApp instantaneamente, participamos online em vários eventos, respondemos e-mail a todo instante. O cérebro já não dissocia o que é trabalho, descanso ou lazer. Desde o momento em que acordamos até a hora de dormir, o nosso cérebro permanece atento e ligado no planejamento de ações e na elaboração de objetivos a serem alcançados durante todo o . Estamos online 24 horas. Nossas ações executivas não se desligam nunca.

Não estamos apenas cansados, não, o cansaço se resolve com uma boa noite de sono. Estamos exaustos. A exaustão é permanente, infindável, não podemos controlar, não sabemos quando terminará.  Só teremos condições de avaliar esse período, após sairmos dele. Tudo antes é precipitado e inconcluso.

As relações sociais presenciais eram redes de proteção para implementar e proteger a saúde mental. Essa rede hoje é inexistente. Adoecemos pelo contágio do vírus, pelo medo da convivência, pela angústia, pela depressão, pela ansiedade, pelo afastamento social, pelo desemprego, pelo luto. Mas o vírus não tem culpa. A dificuldade maior é nossa em não desenvolver estratégias comportamentais que foram negligenciadas ao longo dos anos, estratégias que poderiam nos manter vivos em todos os sentidos. Talvez essa seja a oportunidade de repensar o modelo de proteção e a preservação da vida humana em seus múltiplos aspectos e entender que toda vida importa, todo trabalho importa, toda desigualdade deveria ser minimizada, já que é impossível aniquila-la. A pouca atenção dada à saúde mental denuncia a fragilidade e a ineficácia das políticas públicas de saúde. Estamos escravos de jogos que nós mesmos engendramos. Pode ser que com a invasão do vírus SARS COV-2, sejamos obrigados a viver um novo modelo de sociedade. Não a sociedade da exaustão, porém, a sociedade da empatia, da justiça e da oportunidade para todos.


segunda-feira, 8 de março de 2021

Expoentes espíritas, o roustainguismo e a caça às bruxas


Vladimir Alexei


08/03/2021

Vladimir Alexei


A reencarnação é um fenômeno da lei da natureza e uma de suas características é o progresso do espírito. Entretanto, quanto mais se vive em uma reencarnação, a tendência é que o espírito recalcitre em pontos que precisaria melhorar, arrefecer, progredir, mas que parecem mais fortes do que o esforço em expurgar, de uma vez por todas, aquilo que o prende ao passado de orgulho. Todos estamos sujeitos a isso. Uns mais do que outros.

Mas o que isso importa? Essa é a questão: importa apenas ao indivíduo suas lutas, contendas íntimas, dificuldades e dissabores. A ninguém mais é dado o direito e muito menos a liberdade de condenar, ou apontar “fatos” como se fossem delegados, representantes da lei divina, autoridades filosóficas ou doutrinárias para dizer que alguém, principalmente algum expoente, prestou desserviço ao movimento espírita. Quando se trata de uma opinião pessoal, seria justo que ficasse claro, em um texto, seja qual texto for, que se trata de uma opinião pessoal e não uma dedução insuficiente e perigosa a respeito do trabalho de alguém.

Os expoentes se notabilizaram, principalmente pelos trabalhos desenvolvidos na assistência espiritual e social, dentro e fora da casa espírita, produção e tradução de livros e, decorrente disto, na divulgação do Espiritismo. Fizeram o que deram conta de fazer e fizeram muito bem. Suas obras não são medidas pela extensão e sim pela qualidade, se assim não fosse, escritores vulgares, travestidos de intelectualidade, se arvorariam a paladinos da verdade, como a última bolacha do pacote. E não são.

Bezerra de Menezes é um expoente. Expoente não significa perfeito, infalível, mas alguém cuja obra mereceu o concurso dos espíritos superiores para chegar aos corações mais sofridos, da forma como conseguiram desenvolver. Foi rotulado, de forma “definitiva”, como roustanguista. Inúmeros textos, exposições e até livros extensos, sinuosos, repetem mensagens reforçando tratar-se de um roustanguista.

Quem já leu algum artigo de “Max”, pseudônimo utilizado por Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti no jornal “O Paiz”, saberá como ele entendia o Evangelho. Foi roustanguista? Não há novidade alguma nisso. Embora seja um “fato”, limitar a figura de Bezerra de Menezes ao roustainguismo é de uma infantilidade absurda, para não dizer maldade. Fizeram o mesmo com Eurípedes Barsanulfo, tratando-o como roustanguista, ainda que o Herculano Pires tenha dito que ele “acordou do engano”.

Seria o mesmo que arrolar como roustanguista o Dr. Carlos Imbassahy pela publicação do livro “Religião” em 1942, período em que ainda fazia parte da FEB e um dos motivos pelo rompimento com aquela instituição, dentre outros que foram registrados pelo Professor Carlos de Brito Imbassahy, seu filho.

Outro que sempre é lembrado como roustanguista e como responsável por praticar um Espiritismo que os espíritas não dão conta de praticar, é Chico Xavier. A obra “Brasil coração do mundo, pátria do evangelho” é um exemplo clássico de tentativa de se vincular o Chico Xavier ao roustainguismo. Não satisfeitos, ainda publicaram correspondências entre o Chico Xavier e um dos presidentes da Federação, que foram enfeixadas na obra “Testemunhos de Chico Xavier”. Segundo Herculano Pires, o Chico nunca foi roustanguista, mas, como outros, teve sua obra deturpada.

Embora a análise dos fatos seja feita com o conhecimento e a tendência intelectual de cada um, é estarrecedor que princípios tão básicos de fraternidade e civismo tenham sido preteridos ao rotular expoentes espíritas de forma tão pejorativa e limitada. O curioso é que exemplos de civismo e fraternidade existem no movimento espírita. Vamos a um exemplo importante.

O escritor espírita mais combativo, aquele que sempre levantava sua caneta ou datilografava com a velocidade de seu pensamento perspicaz, intelectual e filosófico, foi o Professor José Herculano Pires.

Em suas mais de 80 obras, algumas duras, com críticas profundas, evidenciando a luta de um pigmeu contra gigantes, jamais se limitou ou dedicou obra para criticar a um dos expoentes doutrinários, seja no Brasil ou fora, culpabilizando-os pelos rumos do movimento espírita. Suas críticas sempre foram à maneira como os espíritas estavam cedendo aos encantos da “sereia”, repetindo erros do passado (“Agonia das Religiões”, “Curso Dinâmico de Espiritismo”, “Mediunidade”, “Na era do Espírito”, “Na hora do Testemunho”, “Centro Espírita”, dentre outros).

Escritor profícuo e tradutor de obras Espíritas, sobretudo as obras de Allan Kardec, considerado no movimento espírita “como o metro que melhor mediu Kardec”, Herculano Pires pode ser criticado por tudo, menos por abusar de sua lucidez doutrinária, por faltar com o respeito ao esforço de qualquer expoente doutrinário. Suas críticas visavam esclarecer doutrinariamente seu leitor quanto ao conteúdo. Um exemplo é a obra “A Pedra e o Joio”. Herculano Pires foi o único expoente a criticar a obra do Dr. Hernani Guimarães Andrade. Criticou duramente, a obra.

É possível que nos escape algum detalhe, entretanto, ousamos perguntar se há, por parte do Herculano Pires, dedicação de páginas e mais páginas de sua lavra para criticar Antônio Luiz Sayão, por exemplo? Ao citar Sayão e outros roustanguistas, Herculano sempre mirou o trabalho desenvolvido por cada um deles e não a figura deles.

Em “O Verbo e a Carne”, obra que fez o Herculano Pires entrar definitivamente para o “index librorum prohibitorum” da FEB, como obra “herética, anticlerical ou lasciva e proibida (...)”, o Filósofo Espírita apresentou seus argumentos quanto aos absurdos produzidos pela obra do advogado francês, autointitulada “revelação da revelação”, abrindo os olhos dos espíritas para com as práticas errôneas adotadas pela federação. Em momento algum imputou a responsabilidade a Bezerra de Menezes. Criticou a instituição.

Alguns maldosos podem dizer que é questão de interpretação, porque está subentendido. Ora, subentender a maldade só faz sentido para quem é maldoso, limitando o movimento do mundo ao seu movimento.

Se Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo, Dr. Carlos Imbassahy e Chico Xavier erraram, nenhum deles se tornou expoente por causa do pensamento roustanguista. Seria justo denegrir seus trabalhos por causa disto? A obra deles nunca esteve circunscrita a esse pensamento anti-doutrinário.

Até a década de 1990, ainda existiam algumas brasas roustanguistas acesas. Arrefeceu em seguida, para despertar de forma retumbante como se conhecer os erros doutrinários fosse mais importante do que conhecer o que é o Espiritismo. Há inversão de valores em muitos livros e “lives” ditas espíritas, quando abordam essa questão. Não percam tempo com isso. Temos muito trabalho a fazer em nome da Doutrina Espírita, a começar por estudá-la profundamente, sem depender de lideranças pseudo intelectualizadas e limitadas, tão falíveis quanto qualquer um.

Por fim, ainda que alguns espíritas insistam na tese de que o roustainguismo é o grande responsável pelo docetismo existente no meio espírita, pensamento que também simpatizamos, embora defendamos a ideia de que esse docetismo é fruto muito mais da falta de conhecimento doutrinário do que de sincretismo, insistimos com a ideia de que limitar o trabalho de um expoente espírita ao roustainguismo é uma forma de denegrir sua imagem e isso é uma tremenda falta de caridade. Já basta o tanto de palavras que colocam na boca desses expoentes como temos observado pela internet. É um tal de “fulano disse” ou “beltrano falou” que só evidencia a pusilanimidade com que conduzem os estudos e pensamentos doutrinários.

Por isso, repudiamos, publicamente, aqueles que responsabilizam expoentes pelos enganos do movimento espírita. Evidentemente não os endeusamos e sabemos o quanto suas obras podem contar conteúdos dúbios em determinado momento, sem com isso invalidar todo o conjunto pois, se há incertezas, estas não estão em seus pilares, como bem orientou o fundador do Espiritismo ao analisarmos uma ideia.  

A “caça às bruxas” foi um movimento de perseguição religiosa iniciado no século XV e que se estendeu até o século XVIII, com requintes de crueldade. A diferença daquele movimento para o atual, é que a caçada ocorria com o caçador olhando nos olhos da caça. As religiões tradicionais estão repletas de pensamentos similares. A Doutrina Espírita não é assim.