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Margarida Azevedo (Portugal) |
O homem do séc.XXI, confrontado com as vantagens da tecnologia, que não só lhe torna a vida mais fácil como está ao serviço de todos, isto é, não é propriedade de uma classe privilegiada (o telemóvel do presidente da república é igual ao do motorista), leva, inevitavelmente, à reflexão de que se o homem atingiu este patamar de conforto pelos seus próprios meios, se foi capaz de através da tecnologia aproximar classes sociais, qual a dádiva de Deus para o homem? Dito de outro modo, qual o bem em nós que é, exclusivamente, proveniente de Deus? Ou o que é que Deus nos dá que seja superior a isto?
Por outro lado, talvez ao arrepio do que era de esperar, a tecnologia não conseguiu afastar o homem de Deus. Pelo contrário, há um resíduo de insatisfação que não é possível colmatar tecnologicamente. As dores da alma são idênticas desde sempre e vão muito para além da luta pela sobrevivência, a defesa de pertences, as lutas pela melhoria das condições de vida. O ser humano é, por natureza, insaciável, problemático, detesta sentir-se só no mundo, muito embora esse mundo o assuste. O olhar para o céu e admirá-lo, deliciar-se com o incomensurável, ou passear o olhar pelos campos e assistir ao acontecer da natureza sempre foram o móbil para êxtases, sensações estranhas, delírios ou visitas a outras realidades. É o fenoménico a fazer despertar para outros sentidos da vida, fazendo-o curvar-se na ânsia de superar o “medo do escuro”.
Assim, aquilo que denominamos fé, cuja natureza desconhecemos, é absoluto, a priorista, ou pelo contrário, existe porque há um delírio ou uma tontura provocados pelas forças da vida natural e cósmica, na sucessão infinita de fenómenos a que estamos inevitavelmente submetidos? Parece que a explicação da primeira não está propriamente ao nosso alcance, porque vivemos o desajuste ou a impossibilidade de puro pensamento; a segunda retrata-nos como portadores de uma fé como ímpeto de espanto. Porém, quer num caso quer noutro há fé, fé sobre a qual é de capital importância reflectir.
Vejamos. Perdeu sentido, tornou-se uma incoerência, a conquista do reino de Deus segundo parâmetros de austeridade, sacrifícios, abstinências; hoje, isso toca as raias do fanatismo, retrata mesquinhez espiritual, apouca a presença do Divino no homem, consequentemente, prática inglória e estéril; por outro lado, longe vão os tempos da extensão dos rituais e cultos dos templos ao lar, em estreita contiguidade, com fim à pureza e recíprocas vantagens no céu. Tal uso ficou reduzido a alguns resistentes mais ortodoxos, e às religiões da natureza cuja teologia ganha terreno. E porquê?
Porque o conceito de natureza como terra, planeta, vida, casa, lar, família, enfim, subiu ao podium. Ele estende o sentido de crime vs castigo a tudo quanto existe: queimar uma floresta ou tratar mal um animal está tão sujeito a castigo divino como um crime contra os haveres do outro, a violência doméstica, etc. “Deus não gosta que atentem contra a Sua obra.”, é o que mais se ouve.
Fé e ecologia é um binómio que as Religiões do Livro têm que levar a sério. A ecologia sobrepôs-se a tudo e a todos. O lar já não é uma casa da família, é também um lugar ecológico; o templo é um espaço onde se ensina e amar a Deus, o próximo e a nautreza, e, por isso, tem o dever pedagógico de sensibilizar para a vida espiritual num sentido abrangente. Hoje, toda a gente critica quem muito bate com a mão no peito, mas não sabe tratar do cão. Já não é possível amar a Deus sem amar a natureza por Ele criada, donde a boa prática ecológica faz parte do estatuto do humano como ser religioso. Lembra-te, Israel, que te tirei da terra do Egipto, da terra da servidão, não adorarás outros deuses além de Mim, não farás nem adorarás figuras, já não chega; amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, já não basta. Hoje, dir-se-ia: “Lembra-te, que além de Mim e do teu próximo, tens que amar a Natureza magnífica, os rios e os oceanos, tudo o que existe no fundo do mar, na terra e tudo o que voa pelos céus. Quando orares, agradece em primeiro lugar o ar que respiras, a água que bebes, os alimentos que te saciam.”
A crise da história e da racionalidade do homem moderno, provocadas pelo desgaste social, traça um caminho para Deus baseado na desolação, não já no pecado enquanto uma falta moral. De tanto querer impôr-se à natureza, o homem sente que lhe perdeu o pulso, assume os desastres naturais como responsabilidade sua, em resultado de más práticas, e teme o desmoronar da vida. Mais temível do que a pena moral de Deus, o castigo divino pelas intrigas palacianas que tantas guerras fizeram, por interesses energéticos, pelos mais cínicos interesses que tantas mortes causaram, o que o homem mais teme é a reacção dos Elementos, as catástrofes naturais, ainda que possa dizer que, no fundo, ambas tenham a mesma origem, divina, a segunda é bem mais temida.
Esta concepção esverdeada de pecado, inevitável face ao estado degradante a que o planeta chegou, pela mão do homem e pela ambição doentia, é ponto de charneira para a emergência de uma nova relação com Deus. Pensar o futuro é reflectir numa nova forma de vida, um novo conceito de felicidade baseado na partilha, não apenas com o próximo, mas também em conformidade com os rios e os oceanos, as florestas e a fauna, respeitando-os e amando-os enquanto autónomos e como fazendo parte do mesmo planeta e de nós mesmos.
Assim sendo, o pecado é alteridade do bem, da paz, do respeito e do amor; voz, não já da nossa natural ignorância, mas a ousadia do querer sobrepor-se à Criação (que é tudo, humano e não humano). O homem continua a ser o grande desconhecido para si mesmo, não há dúvida. Falar de Deus e de si próprio perde-se. Mas isso não significa que faça do bem uma quimera, uma construção longe da vida terreal. Não pode destruir e destruir-se, alegando que só no outro mundo e mum momento fora da História é que é possível ser feliz. Pelo contrário, o bem é o conjunto de acções e pensamentos conduzentes à felicidade individual e colectiva. O bem é sempre viável não impossível. Felicidade e bem são parceiros na conquista do inefável, quem sabe, dos salutares delírios. São caminhos, não o próprio Deus. Deus é inqualificável. O pecado conduziu-nos até aqui. A tomadade consciência da desolação dá lugar à esperança.
A nossa vivência religiosa problematiza esta concepção de bem: ou porque o homem está a pagar uma dívida muito cara a Deus, contraída sabe-se lá onde e quando (ou “quandos”), pouco se importando com as implicações espirituais e religiosas de uma tal posição que, espremida, é vaga, inespecífica e uma resultante da subversão da fé a um passado nebuloso; ou porque vivemos tempos apocalípticos, (todas as épocas tiveram os seus apocalipses, a de Jesus foi uma delas), com a consequente esperança de um líder messiânico libertador e justiceiro. São disso exemplo os novos grupos religiosos que vão surgindo diariamente, ou por dissidência dos já existentes ou novos de raíz, de políticos quais salvadores da pátria e exemplos de fé, com grande moral e cheios de bons costumes, de boa vontade e munidos de belos discursos, que prometem pôr tudo na ordem enquanto o diabo esfrega um olho. Não faltam por aí messias: grupos, indivíduos, partidos políticos, religiões, máximas, preceitos, enfim. Apetece perguntar: qual é o líder que, hoje, não é messias?
O homem moderno mais crítico e mais atento, obviamente opõe-se-lhe, porque está numa relação de proximidade com Deus do tipo “tu cá, tu lá”; o “Pai Nosso” já não diz “vós”, mas “tu”. Para Deus está reservada uma conversa de alma aberta. Deus está aqui e agora, trespassa os pensamentos; não está longe nem se esconde, não quer ser desconhecido, relativiza-se na nossa humanidade; cultua-se não somente no templo, mas na natureza porque Ele é Vida. O culto é um encontro social da fé e uma teatralização de um tempo longínquo, gerador de um sentido que é sempre novo. Cultuar é curvar-se em oração numa ritualística toda memória. A noção de eterno começa aí: a perpetuação de um acontecimento marcante na história, ponto de charneira de uma viragem que mudou o rumo de um povo ou uma nação. Todos os povos são portadores de algo que jamais poderá morrer: um conjunto de factos onde se encontram a História e a Fé.
A memória é uma força da fé na medida em que o apresenta facto histórico como uma vontade de Deus como Ser libertador. Por ela, Deus continua tão participativo como outrora. Por isso, o homem moderno dispensa o passado culpabilizador, seja ele qual for, como for, onde for. É do futuro que ele se ocupa. O que está morto, destruído, disso já não passa. Agora interessa saber o que pode construir, ou melhor, co-construir com o seu Criador. Para quê pensar em culpa, destruição, falta, erro? Já não se trata apenas da nossa História Humana, também da História Natural.
Quanto à fé, transfigurou-se, porque o homem é ele mesmo um ser transfigurado, uma caricatura do que já foi. A palavra da oração é outra, amadureceu, mantendo-se, no entanto, manifestação da transcendência na imanência. A mesma palavra diz e desdiz, chora e sorri, é de cá e de lá, tem força e fraqueza, tem pecado e …, tem natureza e história.
É facto que a fé assumiu, mais do que nunca, o seu duplo papel: religioso e cultural. Mas ainda é mais verdade que se tornou tripla: religiosa, cultural e natural. O reino de Deus já não está num céu azul, mas aqui e agora, ecologicamente.
Por meio da fé, todas as coisas são novas todos os dias, porque todos os dias são novos, singulares e únicos. A natureza, no seu aparente eterno retorno, é uma novidade constante; uma força renovadora qual horizonte de esperança e de liberdade. O homem moderno não pode perder esse horizonte: amar a Deus, o Próximo como a si mesmo e à Natureza, acima de todas as coisas, bem, já não vale a pena dizê-lo porque isso é todas as coisas (o que há mais além de Deus, o outro e todas as coisas?). A grande fé é amor.