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terça-feira, 29 de setembro de 2015

IDENTIDADES DO UNIVERSO ORANTE

Margarida Azevedo
Ao tempo de Jesus, o Judaísmo não tinha um centro de ortodoxia. O próprio Templo não era um centro unificador ideológico. A ele convergiam os grupos mais diversos, tais como baptistas, zelotas, farizeus, aos quais se juntou um novo grupo, os cristãos.

Para além das abordagens teológicas que caracterizavam cada grupo, face à Lei e aos profetas, bem como as singularidas ritualísticas entre si (os banhos rituais entre os essénios, por exemplo), o modo de orar era um elemento identitário característico. Orar com os essénios não era o mesmo que com os zelotas.

Este elemento, porém, não caracteriza o orante quanto ao “quem é”, mas quanto ao “como é”. “Diz-me com quem oras, dir-te-ei como és”, isto significa que o modo de orar é identitário da espiritualidade do orador. Dito de outro modo, “Com quem oro é como eu sou”: essénio, zelota, cristão, etc.

Ao “quem é” responde-se: “É X, o filho de Y; “É A, mulher dos filhos de C”; “É D, da localidade Z”. Há o recurso ao exterior a si para identificar uma identidade parcial, tal como tribo, família, nacionalidade e naturalidade.

Ora, o ”como é” é mais complexo do que o “quem é”. O “quem é” pertence ao nome, ao que é discriminável no espaço e no tempo; o “como é” fala de uma natureza que ultrapassa as questões do nome, é uma identificação fora da impressão digital familiar, tribal ou religiosa.

Pergunta-se: O que é orar? É sentir estadios de consciência; sensações inefáveis, desapossar-se de si; é acreditar que algo vai acontecer e que se gosta; é estar espectante; é, basicamente, mudar o sentido às palavras por meio de uma vontade. Orar é sentir forças e esperar que elas ajam sem barreiras.

Por meio dessa vontade, o orante apela simultaneamente à transformação do mundo. Por isso, a oração é tanto mais sublime quanto mais se espalha, transpondo o débil e limitado horizonte do orante. Como é que se dá esta passagem? De que forma o “como é” se transcende e se ulrapassa? Na oraçâo, há uma possessão característica, pois aquele que ora sente-se possuído por forças. Ao expor-se-lhes, surgem revelações donde a maior é tomar consciência de que algo infinitamente grande se minimiza descendo ao muito pequeno, num momento de uma intimidade que se não expressapor palavras, fazendo-as surgir, num sem sentido, o mesmo é dizer, num sentido que não lhes pertence, num ímpeto de dizer o indizível. O ”como é” une-se ao universo de tal forma que este toma as dimensões do seu coração.

Não se pense que isto tem a ver com o universo mágico. Não se trata de uma coisa passar a ser outra, mas de se manter a mesma, porém com outro modus operandi. Isto é, os afectos exortam o “como é” a que, fervorosamente e por meio de práticas que agradem ao Absoluto, suplique a Sua presença junto de si e do mundo. O material e o imaterial encontram-se no sem sentido das palavras do “como é”.

Este sente-se, por isso, interprete no universo discursivo do outro/novo sentido das palavras, o que para ele significa poder. A palavra pode curar, libertar, purificar, apoucar o mundo à palma da sua mão.

Será o universo “como é” um mundo de fantasias, criador de super-poderes, paradigma de inconscientes perturbados ansiosos de liderança? Para bem das nossas consciências, entende-se por oração um discurso para o bem. Se com Jesus temos o Pai Nosso, oração identitária dos cristãos, que põe em cheque a dimensão hipócrita da vida, e acaba radicalmente com o sistema religioso da troca, temos, por outro lado, como complemento, o cosmopolitivismo da força da palavra, pois o Pai Nosso é uma oração cósmica e passível por ser dita em qualquer credo. Isto é, a cordialidade e o bom entendimento entre todos os que vivem debaixo do Sol é elemento purificador tão forte que dá sentido e força à oração. É identitária para os cristãos, mas é universal na boca do seu profeta. Como ela aprendemos que orar e estar de mal com alguém é anular a força da oração e, reciprocamente, o que é pretendido atingir.

Daqui se infere o quanto ainda estamos longe de tais vivências. A nossa fragilidade leva-nos a cair numa lógica implacável: Dar a Deus para que Deus dê. Logo, quem mais dá mais recebe; o outro é mau, não posso aproximar-me dele. Erro puro.

Não somos fatalmente infelizes, somos cruelmente hipócritas. As longas preces são uma teatralização. A oração em grupo transformou-se num espectáculo para atrair fiéis. Para não se tornarem enfadonhas e despropositadamente repetitivas, o ministrante faz-se auxiliar de equipamentos apelativos.

Além disso, o universo orante não é compatível com o negócio. Ninguém paga a ninguém para orar porque todos nascem preparados para o fazer. Isto significa que a oração é o discurso de um particular que se transcende. Esta força inata impõe-se por uma espiritualidade centrada na misericórdia da Divindade, que a todos dá os meios salvíficos. Assim, Aquele a Quem se ora não nos ama por muito orarmos, nem por muito lhe ofertarmos sacrifícios e outras oferendas. Ele ama-nos antes de nós O amarmos, e porque somos amados conseguimos amar. Temo-Lo dentro de nós.

É este o apontamento a registar no nosso coração. Estamos perante um novo registo existencial que consiste numa mudança radical, de tal forma que corta pela raíz com a lógica negocial.

Com Jesus, inaugura-se o dom do amor como a transcendência da palavra que, na oração, tem o poder ilimitável do Bem.

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