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Margarida Azevedo |
A reencarnação é para muitos uma forma de tentar reviver um passado que, julgam, sedi mentada, de algum modo, uma identidade que receiam perder. De facto, o fim da vida, o terminus de uma passagem curta sobre a terra, não pode ser de forma alguma o fim da memória, a per da total de sentido.
A morte é assim um reingresso numa continuidade que foi, momentaneamente, interrompida, mercê de uma necessidade que se impõe como processo catártico. O esquecimento que tal processo implica torna-se uma espécie de paraíso perdido. O ser humano não gosta de esquecer quando isso significa esquecer-se. E que, se a complexidade da vida presente é uma projeção para um futuro glorioso, esquecer o passado é tomar redutível toda uma existência a um presente fugaz, abreviação de milénios de vida.
É facto que a nossa estrutura psicológica não suporta o
anonimato. A própria Doutrina espírita não vai contra essa realidade intrínseca
à natureza do ser humano. O eu nunca se per de, pelo contrário, a cada
existência ganha mais individualidade, isto é, evidencia-se, particulariza-se.
Contudo, esse passado não é capaz, por si só, de conferir individualidade. Cabe
ao presente essa tarefa.
Assim, é um erro procurar no passado o eu perdido,
esquecido. Ele será sempre ignorado pelo presente, que não tem capacidade para
o desvendar. No entanto, não deixa de ser curiosa esta atração pelo passado,
ainda que se diga que foi pior que o presente, vil, trevoso, sangrento, e todas
as demais congéneres qualificações que lhe queiramos imprimir.
Porém, a questão é mais específica. Não se trata apenas da
temeridade de cair num presente desenraizado, mas de lhe conferir uma singular
debilidade de tal forma que a procura do passado se apresenta como uma luta pela raiz
profunda, fundamento de elementos identitários que o presente não é capaz de conferir. Por
outras palavras, o presente é frágil, insatisfatório, insuficiente, parco e,
não raro, rejeitado porque demasiado fugaz. Em suma, não devemos procurar o
passado, não somos capazes de viver um presente total, isto é, não estamos
prepara dos para viver cem por cento o presente.
Por mais que a Doutrina ensine, perentoriamente, que o
passado está adormecido e, como tal, há que não pensar nele, a realidade
vivencial remete para o incumprimento dessa máxima à qual se sobrepõe com
veemência a temeridade de cair no anonimato. Mais, afirmar que o passado está adormecido não significa
que esteja ausente; afirmar que o
presente se constitui em prolongamento do passado é trazê-lo, de alguma forma,
ao presente. Como exigir que ele seja ignorado? Olvidado? Nós dizemos que é
praticamente impossível.
Não temos nenhuma garantia de que o que está em latência não
se tome consciente. Não somos herdeiros
de uma casa arrumada. O tempo antigo e o lugar confuso de onde somos oriundos
não raro trazem à superfície comportamentos que nos são estranhos, face à
estrutura do presente. Donde provêm os pensamentos impetuosos que conduzem a
atos espantosamente inesperados, de onde
emergem os pensamentos que não foram aprendidos, os cálculos e os raciocínios que não foram matéria dos bancos
de escola?
Esse é o lado que desoculta pequeníssimos traços, laivos
indeléveis do pretérito que, na ânsia de ir mais longe, são abordados como
fenómenos transcendentes. Mas isso não pode implicar a sua procura, uma espécie
de renascimento constante, revivência sem parar. A Doutrina ensina que é nocivo
porque perturbador, causador de distúrbios de toda a ordem. Há que deixar que
esses fenómenos aconteçam pois, seja qual for a sua espetacularidade, emergem
na real dimensão da necessidade de novas
contextualidades.
O passado não pode ser transformado em presente contínuo num
artificialismo do presente. O passado só poderá ser fundamento para o presente
quando for esquecido, desprezado. As próprias
marcas por ele deixadas são, elas mesmas, para ter em pouca conta.
A viver na imensidade de problemas, o ser humano depara-se a
par e passo com a sua limitude, despreza
a ausência de justificações. Viver tem sido ao longo dos séculos a procura incessante
das primeiras causas e dos primeiros princípios, já Aristóteles dizia que a
filosofia é a ciência dessas causas e desses princípios. Somos pesquisadores da
nossa mesma arquê. Os seres humanos não
passam de arqueólogos à procura dos seus arquétipos, os seus paradigmas.
(*) Fonte:
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