O grande cientista italiano Ernesto Bozzano, no seu
conhecido livro “A Crise da Morte”, narra, detalhadamente, um fato da passagem
de uma senhora cujo nome não citou e que pretendo reproduzir em parte, em face
da exiguidade de espaço no jornal e, também, para não abusar da paciência dos
leitores.
Eis: “Eu sabia que ia morrer, mas não temia a morte, não
fremia a essa ideia... os terrores da ortodoxia haviam perdido toda a eficácia
para minha alma: sentia-me pronta a enfrentar a inevitável crise com uma
serenidade filosófica ...dispunha-me a observar e analisar a lenta aproximação
do grande momento. Não queria perder essa suprema ocasião de adquirir
conhecimentos psicológicos que escapam às investigações da Ciência.
Conservei-me como espectadora impassível dos lentos progressos da minha agonia,
esperando comunicar mais tarde minhas observações e prestar um último serviço à
humanidade: o de dissipar o terror que a hora fatal produz em toda gente.
Parecia que o meio terrestre se afastava em torno de mim;
sentia-me como que flutuar fora do corpo, num desconhecido meio de existência.
Não se deu comigo o que julgava experimentar durante a crise da morte... uma
espécie de “epílogo da morte”...do qual todos os acontecimentos de suas vidas
lhe passariam diante da visão subjetiva. Nada disso... não me sentia atraída
nem pelo passado, nem pelo futuro. Um só pensamento dominava a consciência: das
pessoas que me amavam e das quais me ia separar. ... Não me considerara uma
mulher excessivamente terna; levava minha razão a dominar todas as impulsões e
todas as emoções. Contudo, nessa hora suprema, a afeição me pareceu o ponto
mais alto e a substância de tudo o que há de apreciável na existência.
Esse estado de vigília atenta sobre a aproximação da morte
acabou por me esgotar e, pouco a pouco, uma suave sonolência me invadiu.
... Despertei. Esse despertar me pareceu ainda mais doce do
que o período que me parecera ao sono. Olhos fechados, permanecia a gozar
daquela sensação de paz e serenidade. Como era delicioso! Que perfeito era
aquele sentimento de paz! Oh, se ele pudesse durar eternamente! Sentia-me bem;
o que me mostrava que, afinal de contas, ainda não estava a ponto de morrer...
Súbito, ouvi algumas pessoas que conversavam a meia voz no quarto ao lado.
Ouvindo, nitidamente, pela porta aberta, o que diziam... Eis a frase em
questão: “Não duvido de que ela o fizesse com boa intenção; aliás era tão
excêntrica! A outra voz respondeu: Sim, muito excêntrica e também obstinada nos
seus caprichos. A primeira replicou: Foi muito experimentada pela infelicidade,
mas também cumpre se reconheça foi quase sempre a causadora de seus próprios
infortúnios. É o que acontece as mais das vezes...” E seguiu-se a narrativa,
grotescamente desfigurada, de alguns incidentes da minha vida!
Eu estava surpresa: falavam de mim e falavam empregando o
verbo imperfeito: Ela era... Que quereriam dizer? Julgar-me-iam morta? Veio-me
à ideia de que aquelas pessoas poderiam pensar mais tarde que fingia estar
morta para lhes ouvir a conversação confidencial a meu respeito. Dei-me pressa
em chamar uma das minhas amigas, para lhe certificar que eu ainda vivia e me
sentia muito melhor... Elas, porém, não se aperceberam do meu chamado e continuaram
a conversar sem se interromperem. Chamei de novo, em voz mais alta, porém
sempre em vão.
Sentia-me tão bem de corpo e de espírito, que me decidi a
lhes interromper as imprudentes apreciações, apresentando-me diante delas no
outro quarto... mas, o que havia? Fiquei um instante presa de terror, ou de
qualquer coisa semelhante. Que manequim era aquele que alguém deitara na minha
cama, onde, entretanto, eu deveria estar, muito gravemente enferma, o qual
jazia em meu lugar e com o rosto lívido, absolutamente idêntico a um cadáver no
leito de morte? Eu o via de perfil; tinha os braços cruzados sobre o peito, as
pernas rigidamente estendidas, as pontas dos pés viradas para cima. Sobre ele,
um pano branco se achava desdobrado. Mas, coisa estranha! Eu o distinguia
igualmente debaixo do pano e reconhecia naquele manequim os meus traços! Meu
Deus! Estava então realmente morta? Enorme sensação me assaltou, que parecia
abalar-me no mais profundo da alma. Só então foi que todo o meu passado emergiu
de um jacto e me invadiu, com grande onda, à consciência.Tudo o que me haviam
ensinado, tudo que eu temera, tudo o que esperava em relação à grande passagem
da morte e a existência espiritual se apresentou ao meu espírito com
indescritível nitidez. Foi um momento solene e aterrador; porém, a sensação de
terror se desvaneceu logo e só a solenidade grandiosa do acontecimento
permaneceu...
Éramos três a contemplar aquele cadáver, conquanto uma das
três fosse invisível para as outras. ... desinteressei-me delas... absorvi-me
na contemplação do corpo inanimado... Observava-lhe o pálido aspecto, demudado
pelos sofrimentos e com minha mão invisível procurava afastar da fronte os
cabelos brancos que a cobriam, enquanto uma inefável piedade me oprimia a alma,
ao pensar na sorte daquele corpo velho, do qual me sentia separada para
sempre...”
Leitores amigos, abro um parêntese aqui lembrando-me de uma
poesia de Herculano Pires sobre a Morte em que ele agradecia o corpo por
ter-lhe servido durante a existência corporal, despedindo-se carinhosamente dele.
Volto à narrativa de Bozzano.
“Estava então morta? Que estranha sensação a de uma pessoa
saber-se morta e se sentir exuberante de vida! Como os vivos compreendem mal o
sentido destas palavras. Estar morto significa estar animado de uma vitalidade
diferente e extraordinária, de que a Humanidade não pode fazer ideia... Eu
adormecera no mundo dos vivos e despertara no meio espiritual. Como é estranho!
Só nesse momento foi que me lembrei, pela primeira vez, de que estava no meio
espiritual. Até ali, meus pensamentos e minhas emoções se tinham conservado
preso no mundo dos vivos!
Mas, onde estavam os espíritos de tantas pessoas caras, que
haviam transposto antes de mim a fronteira da morte? Esperava vê-las acorrendo
a me darem as boas-vindas no limiar da morada celeste e a me servirem em
seguida de conselheiros e de guias. Não me preocupava o insulamento em que me
achava e ainda menos me assustava; porém, experimentava um penoso sentimento de
decepção e de desorientação. Esse estado d’alma não durou mais que um
instante... vi dissolver-se e desaparecer o quarto em que me encontrava e me
achei, não sei como, numa espécie de vasta planície... Era indescritível a
beleza da paisagem. Caminhava, entretanto, meus pés não tocavam o solo,
deslizava sobre ele. Mas onde estavam aqueles a quem eu amara? Muitos anos
antes levara ao túmulo, com lágrima de desesperada dor, dois filhos que
adorava, um após outro. Quanto os desejara! ...Quando vi diante de mim aqueles
mancebos radiosos, um instinto súbito e infalível me preveniu de que eles eram
os meus filhinhos que se haviam tornado adultos. Estendi-lhes os braços, como
fizera outrora na Terra e dessa vez os apertei realmente ao peito! Oh, meus
filhos, meus filhos! Enfim tornei a encontrar-vos! Oh, meus filhos, meus para
sempre!
Então perguntei ao Espírito-Guia: Por que fui condenada a
passar de um mundo a outro completamente só? O Espírito-Guia: “Condenada não é
o termo minha querida amiga. Não estavas só. Assim te parecia, mas, na
realidade, eu velava ansiosamente por ti, com muitos outros Espíritos de
parentes e de amigos, aguardando o momento em que nos fosse possível
manifestarmos a ti. Para muitas almas de mortos a passagem para o dos imortais
é um período de crise moral muito dolorosa. Tu, porém, não eras uma alma como
tantas outras. No curso das vicissitudes mais críticas da vida, preferiste
sempre agir sozinha; encerraste constantemente no fundo da alma teus
pensamentos, tuas meditações, o fruto da tua experiência, mesmo tuas emoções. ...soubeste
com uma firmeza de heroína encarar de frente a morte. O teu temperamento
convinha que, no meio espiritual, se achasse num insulamento aparente, para
melhor apreciar o valor da sociedade espiritual. Assim, desde que sentiste a
necessidade de companhia e a desejaste com o pensamento, imediatamente nos
achamos em condições de responder ao teu chamado.”
O relato de Bozzano aquece o nosso coração mostrando-nos que
a morte não é jamais aquele terrível quadro que nos pintam as pessoas que a
temem, mas nos insufla o desejo de buscarmos sempre viver com alegria e
disposição, aproximando-nos de todos os entes queridos, familiares e amigos
para que ainda que nos restem algumas críticas por termos errado na vida
encarnada, sobrem-nos virtudes para reencontrarmos os entes que amamos e que
nos antecederam na viagem de volta ao Mundo Maior.
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