JESUS E AS MÁSCARAS II
Margarida Azevedo
Frequentou Universidade Nova de Lisboa
Mora em Sintra/Portugal |
Sabe-se que o discurso não foi identificador, mas sim a nova forma de ver, ou seja, um outro olhar sobre um facto, o partir o pão. Ora, sabemos que a comunhão de mesa significava estar em intimidade com alguém, entrar na sua casa, comer do mesmo prato. Naquele tempo, ninguém partilhava a mesa com qualquer pessoa. Sendo assim, a mesa constituiu-se num processo identitário mais forte que o próprio discurso, mais que a própria presença física de Jerusalém para Emaús. Foi a comunhão de mesa que contribuíu para o abrir de olhos e culminar na certeza de que era Jesus quem, efectivamente, ali estava. A mesa tornou-se no móbil de uma experiência mística.
Numa posição diferente, temos o complexo episódio de Tomé, em João 20: 19-31, que dá o mote para uma nova bem-aventurança: “bem-aventurados os que não viram e creram.” Não estamos envolvidos na questão do que é ver, se o que vemos é o que o objecto é ou se nos reflectimos nele; se vemos ou não vemos, se há transposição do próprio ver em si mesmo para aquilo que é visto. Não ver mas crer significa, neste contexto, que não precisamos dos olhos para a certeza de que a morte foi vencida. O não ver e crer bem-aventura o fiel. A fé não está na prova física, mas na certeza do cumprimento de uma promessa.
Neste evangelho profundamente gnóstico, a questão da identificação não incide na aparência física. A nova bem-aventurança está em assumir também uma nova forma de ver. Dito de outro modo, reconhecer Jesus não faz parte de uma identificação gestual, mas na certeza de que Jesus estará sempre no meio de nós, o Logos que está presente em todos os momentos da vida
Anteriormente a este episódio, Jesus tinha-se manifestado a Maria Madalena, que também não o reconhecera (Jo 20: 15); só ao pronunciar o seu nome ela conseguiu identificá-lo (v.16). Outra questão se levanta: Dizer o nome faz parte de um processo cuja força ou intensidade toca tão fundo que, ao ouvi-lo, a pessoa identifica imediatamente o falante. Porque não aconteceu o mesmo com os restantes? Por que não teve Jesus a mesma atitude para com os outros? Porquê processos identificativos tão diferentes? Estes textos levantam a questão de que o processo identificativo de Jesus não foi o mesmo para todos. Estamos em presença de teologias diferentes, introduzindo-nos em cristologias diferentes. Não é o mesmo identificar Jesus no partir do pão, na fé numa presença incondicional ou no pronunciar do nome. Teologica e cristologicamente em qual nos situamos?
Resumamos o tema em epígrafe, lembrando que os textos foram escritos em grego, que esta era a língua franca na altura e decorria uma profunda helenização:
Este abrir de olhos não é a problemática helenista que opõe os que estão acordados, os filósofos, aos que estão a dormir, os demais. Esta questão nada tem a ver com as influências helenistas da época. Trata-se, isso sim, da tomada de consciência de que mudaremos radicalmente a nossa forma de olhar pela força da fé, agora tornada a certeza de que a vida continua para lá do túmulo; a nova imagem de Jesus, após a ressurreição, impôs-se para delimitar os contornos do aqui e agora carnais e dar testemunho da nova realidade. Contrariamente, a diferença entre acordados/a dormir, do pensamento grego, não é uma questão de fé; pretende-se saber o que é que separa um ser consciente de que nada sabe, de um outro para quem tal problema lhe passa ao lado; de que naturezas humanas estamos a falar. Porém, vida versus morte tornada vida, representada através de um crucificado, é a grande alavanca propulsora de uma transformação impensável para os Gregos (daí o chumbo de Paulo na Grécia). Ocupados com as filosofias existencialistas e as questões ontológicas, a Ética e a Estética, pregar um ressuscitado pareceu-lhes uma loucura. Porém, o modo como encaramos a problemática vida/morte/vida abre novos horizontes, inevitavelmente, aos modos de abordagem das problemáticas da filosofia grega, que muito enriqueceram com a nova doutrina salvífica, baseada na nova forma de fé: a ressurreição. Desde essa realidade, o mundo jamais seria visto da mesma forma, irremediavelmente. Fica-nos, todavia, a questão: Qual é o verdadeiro rosto de Jesus? E a resposta possível: O da nossa fé.
A nossa perceptibilidade, a nossa verdadeira natureza, o nosso eu interior e recôndito, desse só Deus tem a chave. Talvez não esteja no mundo das ideias, como em Platão, talvez resida nesse Deus, e as ideias, de cá ou de lá, obedecerão aos mesmos atavismos, apenas em mundos diferentes. Não nos vemos, há o que pensamos ver, há o que se deixa aparecer, há o que é, há o que simplesmente tem o aspecto compreensível por nós, e há que não sabemos onde nos situarmos.
Acrescente-se ainda que não consta que Jesus, a avaliar pelos evangelhos e Paulo, tenha manifestado qualquer animusidade contra as práticas dos pagãos. As multidões de seguidores e simpatizantes eram compostas por gente muito diferente, não apenas por judeus. Elas arrastavam consigo as suas crenças, que, aliás, muito influiram no movimento dos primeiros cristãos e cujas práticas se mantêm até aos nossos dias. Tenhamos em conta que a grande questão que opunha judeo-cristãos a pagano-cristãos não se situava ao nível das suas vivências religiosas, não consta que houvesse um confronto ao nível das máscaras rituais, mas em torno da prática da circuncisão e do cumprimento da Lei. É aqui que se insurgiamos conflitos, que não são de Jesus. Talvez esta temática tenha constituído o primeiro erro dos primeiros cristãos: para lá da máscara, para lá da Lei e da circuncisão está o humano, a pessoa, que muito acima de tudo isso. Sendo assim, que opinião teria Jesus acerca das máscaras utilizadas pelos pagãos? A questão não parece colocar-se. Jesus trouxe um discurso novo: aceitarmos os nossos limites, as nossas referências. A desmascarização é um longo processo que só o amor poderá transpor, um dia, quando amarmos o próximo como a nós mesmos, e isso não tem mundo, sabemos que, em Jesus, começa aqui e agora. É para já.
Contudo, não se confunda essa ausência de referência aos pagãos por oposição a uma sobrevaloração das longas vestes dos farizeus. Jesus menosprezou as suas preces porque demasiado longas, numa autêntica exuberância discursiva, isto é, a procura dos belos discursos. Mais uma vez os evangelhos delimitam as influências helenistaas da época. Orar não é um acto de retórica, um momento literário com recurso a técnicas rebuscadas. Jesus alude ao discurso proferido com o coração. Os trajes não estão errados, mas o envergá-los para orar como para fazer justiça ou política é que não era compatível.
Além disso, Jesus não defendeu a fé em Deus por oposição às crenças pagãs, tipo cultos domésticos versus cultos da cidade-estado (ver SÓFOCLES, Antígona,), mas que amor é sempre amor. Esta liberdade da fé, primorosamente descrita na Carta aos Gálatas, ainda hoje é um dos “calcanhares de Aquiles” dos cristãos. Em Jesus, a vida não é marcada pelo trágico; amar a Deus e o próximo não é uma tragédia. Ninguém deixa de cultuar os seus mortos ou os seus deuses. O amor é o móbil de todas as formas de fé. Essa herança é universal e, como tal, abrange todas as singularidades
Esta crítica, deu o mote para a importância de grandes máximas, novos valores: o perdão incondicional, o óbulo da viúva, a reconciliação... Estar reconciliado com o seu irmão é mais importante que a crença. A relativização do papel da religião é absolutamente extraordinária, em Jesus. Universaliza o sentimento do amor, transversal a todos os corações, deixando a cada um a liberdade de escolher o modo como se coloca perante ele.;transmite-nos a importância da dimensão da herança espiritual, não se impôs contra ela; não é possível a colisão entre as práticas de cada grupo e o testemunho da presença de um Deus Criador e Senhor do universo
Quanto às máscaras da nossa vivência, símbolo do nosso demorado crescimento espiritual, estamos a anos-luz de nos despojarmos delas, nem sabemos se isso é de todo possível. Por seu intermédio, o natural e o humano fundem-se. Na Era Axial, na China, por exemplo, “O mundo natural e a sociedade humana estavam indissoluvelmente ligados.” (ARMSTRONG, K., 2009, p. 80). E, se dantes esta fusão era religiosa, hoje faz parte das vivências chamadas laicas. No infantário, vestir uma criança de girassol para a festa da Primavera é ensinar-lhe que as estações do ano e a Natureza têm ciclos, e que estes irão fazer parte de si ao longo da vida (não é um rito de fé). Sem a máscara, a criança dificilmente o entenderia. Quando pinta ou desenha, a criança é levada a inspirar-se na natureza e deseja “vestir-se” como ela. Ela quer ser como um girassol, ainda que saiba que o não pode ser
A máscara é de tal forma identitária, possui contornos tão definidos, que podemos dizer:” Diz-me como te mascaras, eu dir-te-ei de onde vens.
O onírico tem, igualmente, uma palavra a dizer. A representação do tempo, o antes e o depois, após uma ocorrência marcante como um cataclismo natural, uma revolução ou um facto milagroso; qualquer coisa que veio alterar o agir rotineiro de um grupo, rapidamente mascara, desenvolvendo preceitos folclóricos, linguagens e gestos. Lembrar esse acontecimento é transportá-lo para dentro de si, armazená-lo na memória, fazendo despertar danças, cantares, dizeres, numa dramatização exuberante do facto singular. A máscara impõe-se numa simbólica arquetípica de um mundo invisível que, só por seu intermédio, se torna visível e participativo no mundo humano. O sonho é factor dinamizador desse colorido
O religioso está em íntima co-relação com o maravilhoso dessa realidade estrondosa. Sem máscara não há religião porque ela precisa do mundo natural e onírico paraa se afirmar
Que máscara tomou Jesus após a ressurreição, qual o seu verdadeiro aspecto? Tudo o que se passou é muito estranho, talvez não tenha sido bem assim. Por vezes, o desejo de enfatizar algo ou alguém conduz-nos a devaneios que podem deixar marcas irreversíveis. Por isso fizeram de Jesus um milagreiro desconhecido, da sua mensagem de caminho para o reino de Deus uma caminhada incompreensivelmente fechada nas alucinações de um punhado que pretende impor-se.
Margarida Azevedo
Bibliografia
ARMSTRONG, K., Grandes Tradições Religiosas, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2009, p. 80.
Bíblias consultadas:
Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2002.
Bíblia Sagrada, Trad. J. F. de Almeida, Lisboa, 1968.
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