A moldura social e política em que estamos encaixados criou um tecido vivencial de tal modo compartimentado que não permite transacções entre si. Há bem pouco tempo, até meados do séc. XX, ou um pouco mais, o indivíduo íntegro era aquele que, porque sem colisões, concentrava na mesma pessoa a harmonia do conjunto de saberes, ideais políticos e religiosos, os modos de estar na família e na sociedade. Era impensável defender no altar determinado propósito e comportar-se de modo oposto.
É certo que muitos houve que faziam desta multiplicidade uma máscara, ou por incompatibilidades de ordem política, ou religiosa, ou outras, nomeadamente sexuais. O casamento, por exemplo, era uma salvaguarda social para os que não queriam casar, por um deficitário relacionamento com o sexo oposto ou outras motivações. Por exemplo, os diferentes gostos sexuais ainda hoje são profundamente discriminatórios. Homossexualidade e heterossexxualidade ainda não estão resolvidas. No entanto, estas clivagens, por verniz ou por desajustes psicológicos, por tendências diferentes ou objectivaçãoes “fora da norma”, eram representativas, também, de uma sociedade pouco aberta, ou mesmo fechada, ao muito diferente.
Ora, o séc. XXI, pomposamente, tem-se esforçado por dar uma imagem contrária, defendendo liberdades e reforçando a importância do individualismo, nomeadamente nas áreas sexual e religiosa. A par disso, deu continuidade à tão importante laicização do Estado, procurando sedimentá-la.
Perante este quadro, aparentemente tão democrático, tudo isto poderia ser, efetivamente, constituinte de um código legislativo que colocassse em pé de igualdade os grupos religiosos. Mas o vil metal, porque quem paga tem direitos, e quem mais paga mais direitos tem, relega para níveis praticamente insignificantes grupos economicamente menos favoráveis. Como é que estes sobrevivem? As teologias ficam para segundo plano, o estudo e as exegeses são letra morta, remetidas para elites intelectuais, manipulando os textos ao interesse da massa anónima de fiéis. Assim, convertem o silêncio económico em promesssas de felicidade na terra, criam um universo de esperança nos desesperados da sorte, nos desherdados do espírito; incutem-lhes o sentimento de que são os preferidos de Deus, prometendo-lhes a felicidade eterna a troco de nada. E se com dor de cabeça ninguém estuda, com a vida às avesssas pensam que também não. Desta forma, não os fazem ver que é no estudo dedicado que parte dos problemas são esclarecidos e, quem sabe, até mesmo resolvidos, ou seja, o inverso do que lhes é incutido.
Posto isto, pergunta-se: O desenvolvimento civilizacional, que colora os discursos dos nossos políticos, faz com que a liberdade religiosa deixe de ser um problema? Houve/há, efectivamente, uma laicização do Estado? Por outras palavras, todos os grupos religiosos têm igual participação na vida pública dos Estados, são igualmente chamados às suas responsabilidades cívicas? Já vimos que não, o que legitima um grupo religioso impor normas que colidam com o que, democraticamente, é votado nos parlamentos. E o contrário também se coloca: Será legítimo saírem leis que não são cumpridas, apenas para ficarem registadas no papel, cujo propósito parece ser o de apenas dar uma imagem floreada de que é democrático um Estado mas, no fundo, subjaz um resíduo de preferencialismos com implicações sociais e políticas discriminatórias?
O que herdámos do séc. XX, principalmente a partir do último quartel? A religião tenta sobreviver, parece-nos, sobre uma jangada frágil numa tempestade que está longe de passar. Confrontando-se com a sua história, as suas bases ideológicas de outrora, o universo de sentido que lhe conferiu identidade está hoje a desmoronar-se. O receio, o medo da perda de identidade, resultado de uma cada vez maior aproximação entre os crentes das várias congregações, está a conduzir a identidade religiosa para segundo plano. A religião tornou-se matéria de consumo como uma pizza: come-se rapidamente, até de pé se for preciso, e acompanha-se com um copo do mais saboroso veneno, uma gasosa cheia de açúcar.
O cidadão europeu e crente tornou-se nisto: Vai ao ginásio uma ou duas vezes por semana, vai ao cinema uma vez por outra, faz jogging aos Domingos, passa horas a navegar na internet, se sobrar tempo, e se lhe apetecer, vai à sua igreja. Se estiver de maré, é capaz de pertencer a um grupozeco lá dentro, principalmente se a vida, entretanto, estiver a dar para o avesso. Se lhe sobrar tempo, faz amor com o/a companheiro/a, mas isso não é importante. Primeiro vê o futebol ou o ténis, faz às compras, enteira-se das marcas de roupa e das novas colecções, vai a um concerto que não quer perder, e só depois poderá haver, ou não, tempo para os amores.
Por mais que ele queira, ou nem isso lhe passa pela cabeça, o que aprendeu na igreja não transpira cá para fora. Se vai para o jogging é porque passa horas sentado, o que é prejudicial para a saúde, se vai a uma igreja é porque precisa de desabafar, o que, para alguns, sempre sai mais barato do que ir ao psicólogo ou ao psiquiatra. No fundo é tudo uma questão de opção: “Vou ao baile, ou vou ao culto?” Depende do que precisar no momento.
A religião já não compromete, não faz o indivíduo sentir-se mais e melhor empenhado na sociedade, não o implica na sua renovação. Quando o indivíduo aparece na igreja já vem modificado que chegue, embalsamado por uma ideologia globalizante e castradora que não lhe dá grande margem de manobra. Ele é um cibernético, cheio de megabits, programado, à procura de um discurso frente-a-frente, para variar. Crê nalguma coisa, tem fé. não duvidamos, mas não dispõe de liberdade mental para a viver. Está tremendamente ocupado. Mesmo que não esteja a trabalhar, tem que estar concentrado na sua actividade profissional, à mínima falha a porta da rua é serventia da casa, e há milhões atrás dele. Vive-se a infalibilidade do falível, o descartável, perdeu-se o rosto, a consideração, o reconhecimento, o valor do outro e o valor que ele é em si mesmo. Que diz a religião a isto? Por outro lado, é esta a laicização tão boa, tão livre e tão democrática?
Confundir a laicização com ausência de valores, com deshumanização, caindo num economicismo gerador de pobreza para transpor para a religião o papel, o tal papel residual, de casa de caridade, é castrador para a religião, é deshumano para a sociedade no seu todo.
Com isto, o laico e o religioso disputam o poder, e disputá-lo-ão ad infinitum, se entretanto as coisas não mudarem.
Que discurso sobra para a religião? Será esta um discurso que, de terrivelmente impositivo, passou a submisso? Estará a religião condenada a ser um discurso encerrado nas suas quatro paredes, vocacionado para os desgraçados, os infortunados, continuando com uma duplicidade do tipo: bem eterno no céu, para os pobres; graças efémeras na terra, para os ricos? Ora, os pobres não terão jamais direito à terra, na qual labutam, e os ricos, porque ricos, ao céu? E onde fica o humano?
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