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quinta-feira, 10 de julho de 2014

DOGMAS ESPÍRITAS?



   
Sonia Hoffmann
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A leitura sem estudo e descontextualizada das obras fundamentais do Espiritismo, acrescida de desconhecimentos semânticos, pode ocasionar sensação de controvérsia em alguns posicionamentos. Os contrapositores da Doutrina utilizam justamente esta inobservância para a tentativa de desconstrução do embasamento espírita, das suas implicações no comportamento humano e do entendimento das leis naturais e morais.

Outro agravo significativo é o fato de muitos simpatizantes e adeptos do Espiritismo, devido a fragilidade ou insuficiência do estudo, desenvolverem crença desnecessariamente conflitante e até mesmo simplória. O envolvimento com um conhecimento nebuloso e precário conduz, consequentemente, estes adeptos a comportamentos instáveis e explicações vacilantes para a sustentação do preceito, argumento ou opinião.

A ocorrência do vocábulo dogma, ao longo das obras básicas, consiste exemplo para tudo que até aqui foi exposto. O discurso constantemente afirma que o Espiritismo não tem dogmas, contudo, basta abrirmos o Evangelho segundo o Espiritismo e as demais obras base da Codificação, incluindo-se a própria Revista Espírita, editada por Allan Kardec no período de 1858 a 1869, que encontramos muitas vezes os Espíritos e o próprio codificador referindo a presença do dogma no corpo doutrinário.

Unidade de Deus, imortalidade da alma e vida futura são essencialmente dogmas de todas as religiões cristãs, referendados por Kardec no capítulos I e II de O Evangelho Segundo o ESpiritismo, pois a Doutrina Espírita está fundada no código moral trazido pelo Cristo na perspectiva da fé raciocinada. Especificamente ao princípio da vida futura, temos nesta obra: "com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de ser teria a
maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não creem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, não os compreendem, ou os consideram pueris. Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos primeiros lugares à frente desta obra. E que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus". Em continuidade, temos "o Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o ensino do Cristo, fazendo-o quando os homens já se mostram maduros bastante para apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se uma realidade material, que os fatos demonstram, porquanto são testemunhas oculares os que a descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias, e de tal sorte que, além de impossibilitarem qualquer dúvida a esse propósito, facultam à mais vulgar inteligência a possibilidade de imaginá-la sob seu verdadeiro aspecto, como toda gente imagina um país cuja pormenorizada descrição leia".

Henri Heine nos apresenta, no capítulo XX de O Evangelho Segundo o Espiritismo, o dogma da reencarnação: "o belo dogma da reencarnação eterniza e precisa a filiação espiritual. Chamado a prestar contas do seu mandato terreno, o Espírito se apercebe da continuidade da tarefa interrompida, mas sempre retomada. Ele vê, sente que apanhou, de passagem, o pensamento dos que o precederam. Entra de novo na liça,
amadurecido pela experiência, para avançar mais. E todos, trabalhadores da primeira e da última hora, com os olhos bem abertos sobre a profunda justiça de Deus, não mais murmuram: adoram".

Erasto, no capítulo XIX, item 4 de O Evangelho segundo o Espiritismo, ratifica a reencarnação como dogma: "Não escutais já o ruído da tempestade que há de arrebatar o velho mundo e abismar no nada o conjunto das iniquidades terrenas? Ah! bendizei o Senhor, vós que haveis posto a vossa fé na sua soberana justiça e que, novos apóstolos da crença revelada pelas proféticas vozes superiores, ides pregar o novo dogma da reencarnação e da elevação dos Espíritos, conforme tenham cumprido, bem ou mal, suas missões e suportado suas provas terrestres."

O Livro dos Espíritos, questão 171, traz a seguinte indagação: "Em que se funda o dogma da reencarnação?" A esta pergunta de Kardec, os Espíritos nada comentam ou não se opõem relativamente à palavra dogma e respondem: "Na justiça de Deus e na revelação, pois incessantemente repetimos: o bom pai deixa sempre aberta a seus filhos uma porta para o arrependimento. Não te diz a razão que seria injusto privar para sempre da felicidade eterna todos aqueles de quem não dependeu o melhorarem-se?

Não são filhos de Deus todos os homens? Só entre os egoístas se encontram a iniquidade, o ódio implacável e os castigos sem remissão."

Na edição de outubro de 1860 da Revista Espírita, Kardec informa: "o Espiritismo é inteiramente baseado no dogma da existência da alma, sua sobrevivência ao corpo, sua individualidade após a morte, sua imortalidade, as penas e as recompensas futuras. Não só sanciona essas verdades pela teoria; seu objetivo é prová-las de maneira patente. Eis por que tanta gente que em nada acreditava foi reconduzida às ideias religiosas. Toda a sua moral é apenas o desenvolvimento das máximas do Cristo: praticar a caridade, pagar o mal com o bem, ser indulgente para com o próximo, perdoar aos inimigos; numa palavra, agir para com os outros como quereríamos que eles agissem para conosco."

A Epístola de Erasto aos espíritas lioneses, lida no Banquete de 19 de setembro de 1861, publicada na Revista Espírita de outubro de 1861, faz referência ao dogma da igualdade: "...Espíritas! a igualdade proclamada pelo Cristo, e que nós mesmos professamos nos vossos grupos amados, é a igualdade ante a justiça de Deus, isto é, nosso direito, conforme nosso dever cumprido, de subir na hierarquia dos Espíritos e um dia atingir os mundos adiantados, onde reina a perfeita felicidade. Para isto não são levados em conta nem o nascimento, nem a fortuna; o pobre e o fraco a alcançam, bem como o rico e o poderoso, porque uns não levam materialmente mais que os outros; e como lá ninguém compra seu lugar e seu perdão com dinheiro, os direitos são iguais para todos. Igualdade diante de Deus, isto é, a verdadeira igualdade. Não vos será perguntado o que possuístes, mas o uso que fizestes do que possuístes. Ora, quanto mais possuirdes, mais demoradas e mais difíceis serão as contas que tereis de prestar da vossa gestão. Assim, pois, conforme as vossas existências de missões, de provas ou de castigos nas paragens terrenas, cada um de vós, conforme as boas ou as más obras, progredirá na escala dos seres ou recomeçará, mais cedo ou mais tarde, a sua existência, caso se tenha desviado. Em consequência, repito, proclamando o dogma sagrado da igualdade, não vimos ensinar que aqui em baixo deveis ser todos iguais em riqueza, saber e felicidade; mas que chegareis, todos, à vossa hora e conforme os vossos méritos, à felicidade dos eleitos, partilha das almas de escol, que cumpriram os seus deveres. Meus caros Espíritas, eis a igualdade a que tendes direito, a que vos conduzirá o Espiritismo emancipador, a que vos convIdo com todas as forças. Para atingi-la, que deveis fazer? Obedecer a estas duas palavras sublimes: amor e caridade, que resumem admiravelmente a lei e os profetas".

Allan Kardec, também na Revista Espírita, edição de outubro de 1862, objetivamente aclara: "Como vos disse ultimamente, o Espiritismo é a luz que deve iluminar, d'agora em diante, toda inteligência votada ao progresso. A prece será o único dogma e prática única do Espiritismo, isto é, a harmonia e a simplicidade". Ou seja, novamente surge o dogma nos convidando a refletir o discurso da negação e a prática da realidade gráfica.

Com a menção de algumas orientações e apontamentos doutrinários até então registrados, fica evidente que o dogma foi positivamente empregado nos textos de cunho espírita, tanto por Allan Kardec quanto pelos Espíritos comunicantes. Assim, frente a tal constatação, como é possível a afirmação de que o Espiritismo não tem dogmas? Como é possível deixar com que muitas pessoas permaneçam confusas diante de uma fala em desacordo com as informações trazidas pelo Codificador e pelos Espíritos fundamentadores do Espiritismo?

Duas vertentes elucidativas podem retirar a sombra que, muitas vezes, paira sobre este fato porque o fulcro da explicação não se encontra na negação da presença do dogma, ou do vocábulo dogma, nos textos da Codificação, e complementares a ela. Esta conduta é tão somente o adiar de um enredamento o qual, enquanto isto, pode gerar ainda mais dúvidas aos neófitos, aos menos estudiosos ou aos simpatizantes desta filosofia, ciência e religião.

A primeira vertente esclarecedora encontra-se no entendimento conceitual de dogma. Este ponto de apoio está justamente nas palavras contextualização e semântica. Kardec utilizou a palavra dogma com a acepção primitiva do termo que, por vários motivos, hoje se vincula muito mais a um significado eclesiástico, litúrgico. Naquela época, e atualmente o dicionário confirma, dogma foi tomado por Allan Kardec no seu sentido original: princípio.

O Dicionário Michaelis revela como significado do verbete dogma: "s. m. 1. Ponto ou princípio de fé definido pela Igreja. 2. Fundamento de qualquer sistema ou doutrina. 3. O conjunto das doutrinas fundamentais do cristianismo". Paralelamente, o tradutor da Revista Espírita, Júlio Abreu Filho, Editora Cultural Espírita Ltda, em nota de rodapé na edição de fevereiro de 1862, alerta sobre o dilema vivido no momento da tradução uma vez que evitar tal palavra poderia representar inabilidade para levar a cabo a tarefa a que se propôs; por outro lado, usá-lo sem qualquer observação poderia conduzir o leitor espírita a descobrir uma suposta contradição ou, então, possibilitar aos adversários do Espiritismo acusarem o Codificador de inconsequente. Assim, ele nos dá conhecimento de que Kardec empregou dogma com o sentido corrente na época: princípio ou, como no significado de origem grega, opinião dada como certa e intangível.

Portanto, o Espiritismo apresenta, queiramos ou não, dogma, significando princípio, porque, se assim não o fosse, a Doutrina não teria eixos que servissem de suporte para todo um arcabouço de conhecimentos. Desta maneira, o aclaramento da divergência quanto à existência ou não do dogma não está, de modo algum, na retirada da palavra do cenário da Doutrina, porém, defini-la em sua origem.

A segunda vertente de explicação prossegue ainda com apresentação pura e simples do que sustém o dogma espírita, ou os princípios e preceitos espíritas, em relação a outras designações religiosas, isto é, a FÉ. O Espiritismo sustenta-se em uma fé raciocinada, que encontra na lógica, no bom-senso,no raciocínio, no livre-arbítrio e na ponderação importantes recursos para o favorecimento da aceitação ou não de determinado princípio. Com isto, ao se fazer referência que no Espiritismo não existem dogmas, aponta-se que esta Doutrina não sugere dogmas particulares, mas sim princípios ampliados e universais, pois unidade de Deus, reencarnação, imortalidade da alma, comunicação com os espíritos, entre outros, não se restringe aos seus adeptos mas para todos que creem ou não em Deus.


Com tais argumentos, me parece que sairemos com franqueza e liberdade das armadilhas preparadas pelos opositores do Espiritismo e nos fortalecemos para a vivência e exemplificação do quanto a fé raciocinada traz como dádivas para a nossa jornada evolutiva, pois ela oportuniza o discernimento e não nos mantém reféns da curiosidade, do imediatismo, da dependência hierárquica, da repetição pela repetição ou da fugacidade do modismo.

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