Qualquer bruxo de renome ficaria siderado com a análise de um leitor perante um qualquer texto. Mediante a interpretação, qualquer ouvinte experiente define o âmbito intelectual em que o leitor se move, os conhecimentos que possuí, aspectos da personalidade. Na leitura somos nós, apenas nós, com tudo a que somos permeáveis. A leitura é uma forma de nudez.
Não é descabido afirmar que ler é um acto mais psicológico que intelectivo. A sensibilidade sobrepõe-se, muitas vezes ou quase sempre, infelizmente, aos conhecimentos adquiridos. O gostar de uma determinada matéria já é uma condicionante, muito embora seja simultaneamente o móbil da investigação. É uma espécie de peão que com capa não anda e sem ela não pode andar. Esse brinquedo filosófico tem aplicabilidade em uma infinidade de situações existenciais, nomeadamente esta que estamos a tratar.
Se por um lado o amor é um sentimento que faz dizer muitas coisas descabidas e ver o negro em tons rosa, numa agradável deturpação do real, também é a mola impulsionadora da descoberta.
Por exemplo, quando um cientista afirma que uma ave possui plumagem exactamente da mesma cor do seu habitat, para se camuflar dos predadores, pergunta-se: A ave sabe-o? Ela transportou-se a esse ambiente para se proteger? O que sabemos é o que é ou o que dizemos ser? A ave não deixa de estar em perigo, nem a plumagem a protege do predador perspicaz. Em que ficamos? É o amor, na sua vertente deturpada que anseia por protecção, ou na sua vertente impulsionadora de descoberta que se apaixona e espanta com a realidade à sua volta?
Se se transpuser esta dinâmica para os Evangelhos, cuja leitura segue idêntica estrutura, nós dizemos que tudo o que deles se afirma, ou quase tudo, é o que pretendemos que o texto diga, e não o que lá está. É o amor desejoso de protecção que fala. Mais, é o amor e a fé, um outro condicionante, pois ler um texto na base da fé não é de todo lê-lo sem ela. Daí a dificuldade, para muitos, em compreender e aceitar o Jesus histórico e a respectiva leitura dos Evangelhos segundo o método histórico-crítico.
Há ainda outra barreira, a saber, aspectos ideológicos. Aquilo que deveria ser uma libertação é, para muitos, factor aprisionante. Daí a pobreza das ideologias, porque limitadoras, quando não sujeitas aos factores de crescimento que lhes devem estar implícitos.
Ora, os Evangelhos estão sujeitos a tantas interpretações quantos os homens e as mulheres. E tem que ser assim. São as nossas experiências que leem, as nossas dores, as nossas interrogações, os nossos surtos, ímpetos, furores, desejos, sensualidades… É claro que queremos uma resposta, e temo-la, na medida em que o momento reverte a razão em voz universal.
Impõe-se saber ouvir o outro. O texto cresce tão mais quanto a troca de ideias for um imperativo para a inteligibilidade dos seus conteúdos. Com isso se democratiza o texto. Por outras palavras, ouvir o outro é democratizar a leitura.
Há leres, não há ler. Sem o contributo do outro caímos nas nossas incongruências, amarramo-nos perigosamente aos nossos sentidos e razão, tornamo-nos o centro universal do nosso umbigo.
Há quem não esteja lembrado que Deus não precisa das religiões para nada, nem das igrejas, nem das ideologias; não precisa de ritos nem de doutrinas. Somos nós que precisamos e por isso os criámos.
Muitos afirmam que a pluralidade de interpretações empobrece o sentido da mensagem de Jesus de que os Evangelhos são a voz. Puro erro. Defender que devia haver apenas uma interpretação seria aprisionar o texto a um parecer, fazer dela uma interpretação perfeita, totalitária, um autoritarismo. Seria afirmar a maior estupidez: ”Não preciso de reflectir ou pensar, tenho quem o faça por mim. Sigo um grande líder!”Os grandes ditadores começaram assim.
É natural que as pessoas se agrupem por simpatias interpretativas. As igrejas dentro das religiões são disso o mais vivo exemplo. Porém, isso jamais poderá ser um processo de estagnação. Se tudo evolui, à excepção de Deus, essas leituras doutrinárias não escapam à regra. Todos são chamados, ou pelo menos devem sê-lo, à responsabilidade de estudar afincadamente as suas doutrinas, com espírito crítico e honestidade intelectual.
Por vezes acontece que determinado local é mais propenso a um tipo de trabalho interpretativo do que outro. Aí múltiplos factores se conjugam: porque sujeito a idênticas influências, por tradição cultural, ou até por semelhança vivencial. Isso não significa que o texto seja propriedade desse grupo. Por exemplo, podemos dizer que o Vaticano é a pátria do Evangelho? Não, é a pátria de determinada organização dentro do Cristianismo, a qual gira em torno de leituras de ordem diversa, de vivências, de ritos. Assim, o Vaticano é a sede do mundo católico, não do Evangelho, nem tão pouco se pode dizer que seja a sede de todas as suas interpretações. Qualquer que seja a igreja ou doutrina, ela assenta sempre na pluralidade interpretativa que, quanto mais divergente, maior a proximidade junto dos crentes, maior a capacidade de resposta às suas questões.
E ainda que houvesse um país muito santo, muito puro, muito seguidor dos preceitos evangélicos, ele jamais seria a pátria do Evangelho, porque a mensagem de Jesus será sempre universal, as bem-aventuranças serão sempre para aqueles a quem se dirigem, porque serão sempre os doentes que precisarão de médico, porque a Cruz é universal, porque uma santidade imposta nunca será uma verdadeira santidade, nem a pureza nem os preceitos, porque crer em Jesus, como um exemplo em tudo o que há de melhor, é liberdade, é virtude, é sabedoria. Tudo isto, e muito mais, infinitamente mais, significa Cristo. Daí a afirmação de Paulo, bastante complexa, ininteligível, “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” (Bíblia de Jerusalém)
Margarida Azevedo
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home