O orador, de vasta obra literária publicada, utilizava o nome de Chico Xavier porque, sabendo que no Espiritismo quem se intitule amigo carnal do referido médium tem cartão de entrada livre em tudo o que é Centro Espírita, não se poupou a exemplos biográficos, a referências ao seu trabalho como médium, a pormenores do convívio com ele numa tentativa de incutir no auditório que estava perfeitamente à altura da confiança do referido mentor.
A saúde mental ficou pelo caminho, as citações do Evangelho também, e o que o orador pensa a propósito de tudo isso, em que se baseou e quais os objectivos da conferência ainda dormem no tinteiro da impressora. Nem palavra.
Mas não se pense que o público desarmou. Bem pelo contrário. Estava embevecido. O discurso expelia luz a cada palavra, a cada sílaba, a cada olhar mais ou menos intenso. O discurso implicou, envolveu, tornou cúmplice cada ouvinte, fazendo-o sentir-se espelhado em cada palavra, envolvendo-o na perigosa suposta evidência da explanação, e assim silenciando cada cérebro de per si. Podemos dizer que todos se sentiram privilegiados por terem a felicidade de estar ligados a uma doutrina que os presenteia com tão nobres quão sublimes lições de luz.
Numa espécie de transe discursivo, galvanizando o auditório e transpondo-o a sensações de alegria e de felicidade que diríamos extáticas, ninguém pestanejava, numa perturbação entregue a um misto de desconforto e libertação. Primeiro por todos concluírem que estavam cá muito em baixo, eram muito inferiores ao orador, que tinham muito que caminhar para chegar ao seu nível, segundo porque as palavras ouvidas eram libertadoras dos grilhões das trevas, que o discurso se tornou um passe qual bálsamo do tipo água-benta purificadora.
Piorando um pouco mais, alimentou-se a ideia, muito comum porque pré-estabelecida, de que o tão grande médium tinha ao seu redor e ao seu serviço Entidades de grande gabarito, que o inspiram na escrita e na oralidade. Ouvi-lo e lê-lo é estar em contacto com as referidas Entidades, receber os seus gloriosos ensinamentos.
Daí, porque sobejamente conhecido pelo perspicaz orador, não lhe foi difícil perscrutar as mentes, dizer o que estas queriam ouvir, tornando-se-lhe fácil a tarefa enganosa. Ele soube, numa dose quanto baste, tornar perturbador o discurso, manipular as consciências ávidas de alva pureza, utilizar os mais ocos sentidos das palavras, mascarando-as e travestindo-as de conceptualizações científicas. Do livro cujo título tem o mesmo nome da conferência, e que terá sido ditado por uma das Entidades que se comunicam com o orador, também se pouco falou, até porque o livro estava á venda e quem quiser saber mais… é só comprar!
É lamentável que o público espírita seja tão intolerante quando não o deve ser, e tão submisso aos aparatos da retórica falaciosa de pessoas sem escrúpulos, que espalham a sua ignorância como verdades absolutas.
É certo que todos estamos a caminho de qualquer coisa que denominamos Bem, mas nem todos estão no caminho. O Espiritismo tem vindo a revelar-se uma doutrina fácil para os charlatães desde que enveredou pelo caminho da ignorância. Falam de ciência, mas onde estão os profissionais das mais diversas áreas, dos diferentes colégios de especialidades? Não os vemos a trabalhar nos Centros. Porquê? “Porque não são espíritas”, respondem alguns. Mas então, há átomos espíritas e não espíritas, células, animais, plantas; há matemática espírita, notas musicais espíritas? Desconhecíamos.
E quanto às literaturas e línguas, à história e à filosofia. Há verbos e gramáticas espíritas?
Só é história a história do espiritismo, e a filosofia também?
Por isso a Doutrina está completamente isolada face às demais, socialmente marginalizada, confundida com bruxaria, artes adivinatórias, remetida para o sótão onde predominam as teias de aranha. Entregue ao preconceito de que quem está no Espiritismo está no bom caminho, não precisa da opinião de mais ninguém, vive o devaneio do orgulhosamente só, presa nas mãos de uns quantos que vêm nela o meio de se evidenciarem, numa ânsia doentia de protagonismo estéril e inconsequente, gente sem escrúpulos que não olha a meios para atingir os fins.
Isolada, a Doutrina tornou-se palco de teorias sem nexo, onde tudo é possível ser dito, excluindo o indispensável espírito crítico, salutar quão libertador, uma vez que os entendidos nas matérias são os excluídos, alvos preferenciais das bocas maldizentes das trevas inescrupulosas.
Oração e Evangelho é do que se precisa. Libertar-se de retóricas, das seduções discursivas. É hora de a Doutrina se envolver de verdades vividas por cada um de nós, pois todos possuímos a nossa verdade sentida na carne, na luta de cada dia, no crescimento difícil e árduo, por vezes ou sempre, neste caminhar para um cimo que não definimos, mas que queremos com todas as forças.
Mas também é hora de nos envolvermos com ela com veemência e determinação, e dizermos aos discursos fúteis das trevas “Não vos queremos cá, apartai-vos de nós”.
Precisa-se da troca urgente de testemunhos, da partilha de experiências, do convívio são e honesto; precisa-se da luta pela verdade acima de todas as coisas. Não é por falar de amor que mais se ama. É no terreno que se dão provas do amor.
Vigiar e orar, passar tudo pela razão. Porém, se estes adoecerem, estamos perdidos.
Não é por muito vigiar, nem por muito orar, nem por muito usar a razão que está o garante da verdade e do amor. É na sapiência de com estes se afinizam que está o segredo.
Fica apenas esta sugestão: procurar, antes de tudo, o Reino de Deus, tudo o mais…
Margarida Azevedo
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