DEUS, A MÃE E O FILHO
margaridamariaazevedo@gmail.com
Portugal
E disse: Toma, agora, o teu filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto, sobre uma das montanhas, que eu te direi.
Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde os céus, e disse: Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.
Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto, agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único.” (Gn 22: 1-2; 11-12)
Aprende-se através destes versículos que não basta dizer que se acredita em Deus, é preciso prová-lo. Porém, algumas provas parece que transcendem em muito o razoável.
Será que é preciso numa dimensão sacrificial o sacrifício, e nomeadamente da própria vida, para provar a fé? Que representa a vida em relação à fé? Precisará a fé da minimização vida, de a tornar insignificante?
Este cap. Gn 22 remete-nos para a dimensão trágica do amor e da fé, um dos binómios mais complexos da nossa existência. Com linguagens diferentes, objectivos e vivências diferentes, neste capítulo, incompatíveis e em conflito, remetem-nos para: Quem amo mais, Deus ou o meu filho? É esta a grande questão da reflexão que se segue.
Mas o texto vai ainda mais longe. Em sua magistral sabedoria, não nos permite colocar as seguintes questões: O que faço com a fé, na ausência do meu filho, que matei sem ripostar? Que alegria numa fé baseada no infanticídio do único filho, objecto do amor total? Como é que a fé anula o horror da morte do filho, uma ausência sem retorno? Não podemos colocar tais questões porque o infanticídio não chegou a acontecer e, como tal, a reflexão é vazia de conteúdo. As respostas a estas questões nunca as iremos ter porque o texto deixa-nos em suspenso...
Aquilo para que nos remete, entre outras coisas, é para a tomada de consciência de que podemos ser interceptados por Deus, pedindo-nos coisas dificílimas e por meio das quais somos confrontandos com as mais cruas questões existenciais, entre elas as provas da nossa fé.
Por outro lado, todos sabemos que as situações-limite nos conduzem a realidades que desencadeiam em nós estados de alma, avivam ou recalcam sentimentos conduzindo-nos a certezas de tal forma ilusórias que nos fazem crer que determinadas coisas estão na iminência de acontecer. São episódios que nos põem à prova mediante testes muito complexos, em que precisamos de pôr em causa ou reflectir sobre o que temos acreditado desde sempre, impondo-nos nervos de aço para tomarmos decisões ao arrepio do que seria esperável.
Através do capítulo em questão, é-nos exigido que saibamos viver com o desconhecido e o inesperável, aceitar a realidade de que viver é não saber como tudo vai acabar. Abraão não sabia se Deus o deixaria levar o teste até ao fim, nós, séculos mais tarde, também não. Quem sabe se apenas ficou adiado?! É dramático pensá-lo.
Mediante as nossas estruturas afectivas e a nossa relação com Deus, bem como o modo como estamos na fé, será que Deus não estará disposto, hoje, a pôr-nos à prova mediante idênticos processos? Esta questão, não já face ao que não aconteceu porque Deus não quis, mas em nome de um futuro que depende só de nós, faz algum sentido.
Matar o filho para provar a fé é o absurdo dos absurdos. Mas é para a análise de abismos como este que a Bíblia Hebraica nos remete: a dimensão trágica da nossa existência, os absurdos, as aporias, o ilógico.
O capítulo (Gn 22) alude indiscriminadamente a Deus e ao anjo como se de uma personagem única se tratasse, revelando duas presenças numa só. Nos v. 1-2 quem fala é Deus, enquanto nos v. 11-12 é o anjo. Porquê? Não poderemos assumir isso como uma fuga de Deus? Onde estava Deus aquando do holocausto? Era suposto que Deus estivesse também em 11-12. Por que não está?
Não poderemos entender isso como uma resposta do género: nos momentos cruciais, quando o mecanismo já está irreversivelmente em acção, somos entregues a nós mesmos, abandonados às nossas próprias decisões? A decisão é sempre complexa e isolada, e segundo o capítulo em epígrafe, nem Deus interfere.
Vejamos a mesma história pelo lado feminino, e coloquemos as seguintes questões: Porque é que a mãe, Sara, está ausente deste diálogo? E se Deus tivesse dirigido o mesmo pedido à mulher? E já agora, por que não o fez?
Parece que toda a história teria outro desenlace. É que uma mãe é um animal muito estranho. Atacar um filho é candidatar-se a observar até onde pode ir a ferocidade, ainda que representada na mais franzina das mulheres. Não há animal que lhe ganhe. O leão mais bravo não passa de gatinho manso quando comparado com uma mãe assanhada. É uma experiência que não aconselho a fazer.
Por outro lado, questões como justo e injusto, dignidade e indignidade, verdade e mentira não passam de binómios sem sentido, facilmente ultrapassáveis quando se trata de defender um filho. Por ele, a mãe pobre deixa de comer para que a ele não falte; faz qualquer coisa para o vestir e calçar, para que seja alguém na vida, vai ao fim do mundo, ultrapassa impossíveis, até faz o pino em cima de pregos.
Se Deus tivesse feito o mesmo pedido à mulher, e o autor do texto sabia-o muito bem, o desfecho teria sido o fracasso de Deus porque a experiência gorava. A mulher não teria ido ao monte para entregar o filho em holocausto. Menos ainda ser ela própria a matá-lo. Nunca, jamais. Deus não teria podido provar a importância da fé, e o amor incondicional pelo filho sairia vitorioso. O animal-mãe encara o filho como sendo o seu próprio anjo, o seu pequeno deus, donde viver é trabalhar para ele.
Abraão está sempre presente não por se tratar de um patriarca, ou por se crer, erroneamente, que na Bíblia a mulher é considerada inferior ao homem, a Bíblia está cheia de mulheres importantes, do Primeiro ao Segundo Testamentos. O facto é que há certos pedidos que não se podem fazer a uma mulher. Este é um deles.
Exigir que a mulher entre em conflito com o seu filho, ainda que em nome da fé ou de Deus, é melhor não exigir, pois a mãe prefere o inferno com o filho do que o céu sem ele.
A grandeza da vida humana é precisamente a dinâmica destes conflitos, os quais nem sempre terminam bem. Há um que é esmagado pelo outro. Para a mulher, crer em Deus é um caso arrumado, desde que não vá mexer com o seu sagrado pessoal afectivo. Ao longo da história das religiões, o feminino tem desempenhado um papel preponderante, todavia há que não esquecer de que há outra camada que se sobrepõe, uma outra forma de relação com o divino. A mulher tem como que um pacto de não agressão com ele porque, no que toca ao seu filho, estamos perante o seu próprio sagrado, o que para ela é intocável.
No entanto, o amor incondicional pelo filho não poderá ser uma linguagem da fé? Um dos grandes enigmas do mundo é o amor de mãe. É incondicional, desmesurado, cego, universal, atemporal, … E a fé não deveria ser assim? Lembremos que Francisco de Assis afirmou que gostaria de ver os homens comportarem-se como filhos de uma só mãe.
Em termos de interpretação judaica, a nossa leitura seguiria outros caminhos. Não no que diz respeito à mãe, mas em relação ao Homem. A grande novidade do Judaísmo é que Deus é Deus sem precisar de apoucar o próprio homem, e o homem é o homem sem precisar de se rebaixar perante Deus. São ambos importantes e grandes, donde não é necessário que um anule o outro.
Nesta ordem de grandezas, Deus e Homem encontram-se na História, e por isso o Messias tão esperado tem que ser um líder político, libertador de toda a opressão porque directamente ao serviço de Deus.
Se Deus tivesse levado a prova até ao fim, estaríamos em presença da escravização da fé, a opressão de Deus sobre o homem. Ao deixar viver Isaac, Deus confere a Abraão a alegria da fé. E a História é a trama dos vivos, não dos mortos.
Margarida Azevedo
Agradecimentos
O meu muito obrigada ao grupo ecuménico de estudos bíblicos, que tanto me tem ensinado, e de que tenho a honra de fazer parte há já onze anos.
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home