Margarida Azevedo
Portugal
A imaturidade do espírito humano tem deturpado o trabalho exemplar dos profetas que vão passando por este planeta com o fito essencial de o libertar das forças da ignorância. As suas máximas tornaram-se difusas, como em Siddharta Gautama (Buda), o seu pensamento perturbador da ordem pública, como em Sócrates, a sua conduta politicamente inaceitável, como em Gandhi.
Porém, nenhum foi tão adulterado nos seus propósitos como Jesus. Pregador do amor e da concórdia, do perdão e da tolerância, os seus seguidores, ou os que dessa forma se apresentam, investiram-se de um sobre poder, apoiado numa espécie de força supra-sapiencial, que os conduziu a formas de divulgação de tal modo áridas e bélicas de que não há paralelismo na História das Religiões.
Se Jesus viesse hoje a este mundo seria um juíz implacável contra os seus próprios seguidores, pois seria impossível que se identificasse com o movimento a que chamamos Cristianismo. Aliás, o Cristianismo não precisa de Jesus, nem hoje nem nunca, pois ele é a sua antítese.
Os cristãos construiram um edifício ideológico que nada tem a ver com o dar a outra face, nem o sem pecado que atire a primeira pedra. Os cristãos assenhoraram-se do mundo como se este fosse deles e transformaram-no num vale de suplícios, quer para eles próprios, quer para os que não fizessem parte do seu grupo. Gradativamente, o fosso entre cristãos e Jesus, o Cristo, agigantou-se de tal forma que se houver alguma semelhança entre eles é mera coincidência.
Ao rejeitar as suas raízes judaicas e ao perseguir os judeus, o Cristianismo deu origem ao seu maior erro historico-religioso. O esforço vão de crer implementar um Jesus fora do seu meio, independente da religião de que fazia parte, retirando-o da sua natural mundaneidade conduziu a séculos de desentendimento entre ambos. Proibiram o estudo da Bíblia, fizeram dos Evangelhos letra morta, cujos estudos permaneceram encerrados nas bibliotecas da classe sacerdotal. O Cristianismo foi, assim, durante séculos uma religião bseada na ignorância. Não percebendo que Jesus veio reformular o próprio Judaísmo, baseado na redenção ou transformação interior do homem, traçando o caminho de salvação para toda a Humanidade. Segundo Jesus, ser judeu era ser portador da maior liberdade religiosa alguma vez pensada. O judeu era o escolhido por Deus para transmitir à Humanidade a existência de um Deus único, sem nome e sem representação figurativa. Em que medida o judeu podia ser diferente do gentio? No muito amor a Deus e ao próximo, na sua capacidade de perdoar, ou seja, numa vivência equilibrada entre o divino e o mundano. Jesus, como bom judeu, continuou o trabalho dos profetas, ensinando como viver com Deus e com o homens. A dimensão histórica do homem não pode ser anulada, pois ela é o palco das nossas acções para Deus. E Deus, por seu lado, para se dar a conhecer, manifesta-se na história dos homens.
Com a rejeição do Judaísmo, o Cristianismo talvez pensasse que conseguiria semelhante feito em relação ao politeísmo. Segundo erro. Não tendo força força espiritual para impor-se ao politeísmo, tão politizado quanto religioso, e pretendendo implementar-se politicamente, o Cristianismo acabou por ser absorvido por ele. A diversidade de ritos, de deuses com resposta para todas as necessidades humanas, muitos deles dependentes de grandes correntes filosóficas, de que ainda hoje somos seguidores e legítimos herdeiros, impuseram-se aos cristãos, que não tiveram bagagem intelectual nem religiosa para se lhes impor, como muito bem o fizeram os nossos irmãos judeus.
À “modernização” da vivência monoteísta de um Israel cercado por uma multiplicidade de cultos aos diversos deuses, tomado de assalto pela maior e mais poderosa super-potência politeísta, a mensagem de Jesus sobrepôs-se aos factores militares e políticos da sua época, ultrapassou barreiras sociológicas e dirigiu-se, antes de mais, “às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Com isso, Jesus pôs fim às clivagens entre judeus e não judeus, a começar por fazer compreender aos “dissidentes” do Judaísmo o verdadeiro papel dos seguidores de um Deus libertador, a Quem devem amar acima de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmos. Em termos práticos e sem pruridos, como é que um zelota podia amar um pastor, ou um farizeu um carpinteiro; como é que os essénios podiam amar os judeus do Templo? A diferença implementada pelos laços da consanguinidade, da profissão ou religiosa não fazia o mínimo sentido para Jesus. Um judeu que a defendesse era por ele considerado uma ovelha tresmalhada.
Esta proposta escandalosa fez tremer as estruturas vigentes, uma vez que a nova noção de próximo não coincide com a de classe social, profissional e menos ainda com a de religião. A salvação emancipa-se do factor religioso e passa para o coração do homem/mulher. A fé é igualmente libertadora no centurião romano, na mulher adúltera, no covulsionário. O sinal que tanto era pedido a Jesus já não caía do céu, estava no coração de cada um. Ser crente em Deus passou a ser uma questão de vivência interior e não uma manifestação estéril do cumprimento da Lei: o que vai na alma e o que é mostrado podem não estar em consonância. O sinal da presença de Deus mostra-se no poder da fé.
Por seu lado, a rede complexa de cultos cristãos às mais diversas Entidades, muitas delas tão ignorantes e tão trevosas como quaisquer outras, foi um substituto mal feito dos cultos que lhe pré-existiram e cuja presença ainda não foi apagada. Por outras palavras, ainda hoje os cristãos têm dificuldade em afirmar o monoteísmo do judeu Jesus, baseado no universalismo das noções de próximo e de salvação. O culto mariano e aos santos, enaltecendo os seus feitos, especialmente a sua heroicidade, martírio ou perseguição como o mostra, por exemplo, a figura de João Baptista, ou até com um historial mais erotisado, Sta. Luzia, a quem, segundo reza a lenda, o pai mandou prender nua à cauda de um cavalo, por ser cristã, mas que ninguém a viu por nesse dia se ter formado um denso banco de nevoeiro, entre outros, fazem do Cristianismo a maior antítese do pensamento de Jesus, e consequentemente uma farsa em termos de monoteísmo.
Ao estender-se aos quatro cantos do mundo, este pan-cristianismo doloroso, sem Cristo e sem Jesus, depressa cresceu como religião do medo, politicamente forte, intolerante e gananciosa. O pan-cristianismo espalhou o terror, arrumou os evangelhos na prateleira e ergueu-se como a voz da hipocrisia elevada ao maior expoente.
Este tecido sintético não conseguiu articular o cruzamento de linguagens proveniente do Judaísmo, e que este soube exemplarmente compreender e estruturar, entrando assim num caminho escorregadio onde confundiu tudo o que havia para confundir: criou redes temáticas baseadas em hermenêuticas exclusivistas, cujo resultado nos leva a termos que afirmar que somos mais seguidores de João Baptista, em termos ascepticos, de Paulo de Tarso, em questões temáticas, que propriamente de Jesus. E ainda que se defenda que é mais fácil seguir João ou Paulo do que Jesus, o certo é que impõe-se o dever de colocar Jesus em primeiro lugar, as suas máximas serem as nossas máximas, o seus preceitos serem os nossos preceitos. E nada disso ainda foi feito.
Porém, reflictamos: será que é, efectivamente, mais fácil João ou Paulo que Jesus? Será que é mais fácil seguir um pregador do deserto, que se alimenta de mel silvestre e gafanhotos, que prega um ascetismo radical, que se envolve na vida íntima de Herodes, que prega o arrependimento porque o fim está próximo? Será que é mais fácil seguir Paulo segundo 1 Cor 13:1-13, ou cumprir a máxima “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim;”(Gl 2-20)? Em torno de Jesus poi criada a imagem do impossível e do impraticável, o que justificou a sua ausência do movimento cristão. Caminhar para Deus no mundo é bem mais fácil do que fora dele. Jesus jamais pregou uma doutrina impraticável. A sua proposta foi a de começarmos a ser outros, já neste mundo, aqui e agora. Caminhar para Deus acontece em qualquer lado, a qualquer hora, com toda a gente.
Por outro lado, Cristianismo pegou nos fracos e oprimidos, nos pobres e desavindos e fez deles o seu ex-libris. A miséria tornou-se virtude e a riqueza perdição. Com isso apresenta Deus como um amigo dos desamparados, para os quais está prometido um lugar muito especial no céu. No clímax deste discurso, muitos houve que seguiram uma vida de devoção à pobreza mais do que a Deus. Seguir um ideal baseado em ausências, incluindo da própria saúde, converteu-se em senda beatificante para atingir o eterno descanso e a luz perpétua. Jejuar, enfraquecer à fome e à sede com o fim de abreviar a vida, auto-mutilar-se ou flagelar-se transformaram-se nos mais cínicos substitutos da verdadeira apologética de Jesus, a saber, a transformação intrínseca do ser humano. Não perceberam que Jesus jamais defendeu tais práticas e que, portanto, a sua mensagem foi totalmente adulterada.
Com tudo isto não é de causar espanto que, aquando da pergunta “ O que é o Cristianismo?”, a resposta não surja. Como definir uma religião que vai contra os princípios do profeta que diz estar na sua origem? Como justificar e definir uma religião criada sobre as bases de um profeta que ninguém segue, que viveu noutra religião, e cuja temática foi a reformulação da mesma, face à conduta dos seus seguidores? Como explicar a criação de uma religião a partir de determinado profeta, o qual, por sua vez, não criou religião nenhuma? O que é e de onde vem tudo isto?
Mas a questão principal ainda não é esta. Além de pregar o amor como condição máxima para ter um lugar no Reino de Deus, Jesus foi igualmente um profeta da alegria, o que também é uma novidade, tão importante como defender o amor. O ambiente festivo da boa mesa, como muito bem nos descreve Lucas, e o amor ao próximo são os dois pilares fundamentais do seu edifício religioso. Dito de outro modo, o mundo, como criação de Deus, é para amar, e viver nele deve ser um estado de alegria. Jesus desperta-nos para um Deus sem sacrifícios mas de prazer, sem abstinências mas de salutar convívio em comunhão.
Tenhamos em linha de conta que entrar em casa de uma pessoa, para um judeu do tempo de Jesus, era entrar na intimidade dela, donde tomar uma refeição em casa de alguém era comungar com essa pessoa. Tratava-se de situações de tal forma específicas e importantes que não eram possíveis entre classes sociais diferentes. Os doentes, aleijados, pobres, mulheres, crianças eram considerados inferiores e impuros, tais como as profissões de pastores, prostitutas, cobradores de impostos, os que sepultavam os mortos, etc., que, como tal, não eram convidados para nada. Jesus, porém, não age dessa forma. O seu objectivo foi mostrar que todos têm dignidade e fé, além de que todos podem alcançar o Reino de Deus, bastando para isso que cumpram as máximas de uma vivência em amor e paz.
Ora, o factor determinante para o chumbo do Cristianismo consiste precisamente em não perceber a dimensão de amor, alegria e liberdade defendidos por Jesus. Ao arrepio de tudo isso, a alegria era pecado, as imagens de sofrimento proliferaram, a dor foi enaltecida e adorada, cultuou-se a imagem de Jesus crucificado ao invés de um profeta cheio de vida e de Luz.
Nesta apologética, chegou-se ao ponto de defender, nalguns casos, o celibato, pois que ter filhos, ou ter uma normal vida sexual tornou-se pecaminoso. Não ter filhos, nem família, nem amar alguém foi convertido em ideal salvífico, o nobre desapego das coisas materiais. A sexualidade tornou-se corrupta e enganadora do Espírito, impeditiva da sua libertação; viver para Deus era desprezar o mundo porque corrompido, um paraíso perdido pela força do pecado.
Estavam desta forma criadas as linhas de força para um prolongamento do erotismo vinculado ao interdito: excluindo da sexualidade a sua componente de prazer, esta foi reduzida a acto técnico procriativo. Moralidade e sexo tornaram-se alavancas de uma doutrina baseada no fruto proíbido o mais apetecido.
Assim, ao criar interditos sem sentido, o Cristianismo tornou-se a principal vítima das suas máximas. O interdito serve apenas para despertar a curiosidade, empenhar-se em procurá-lo e descobri-lo, logo atrai a atenção para si próprio.
Em suma, as igrejas cristãs em que o Cristianismo se subdivide, facto gerador de grande confusão nos seguidores das outras religiões, com vírgulas a mais ou vírgulas a menos não respondem às necessidades espirituais dos seus seguidores. Cada vez mais os cristãos procuram fora do Cristianismo algo que complemente a ausência de respostas para os seus problemas. Isto, porém, não significa desvinculação a Jesus, é antes uma procura, uma pesquisa com o objectivo de o situar no panorama espiritual e religioso. Os cristãos já não conseguem crer sem compreender.
No século XXI, com o desenvolvimento da pesquisa sobre o Jesus histórico, e de uma maior maturidade do método histórico-críico da análise bíblica estão criadas as traves-mestras para a inauguração do verdadeiro Cristianismo. Cansados de sofrimento, perseguições e guerras, os cristãos estão a encetar um novo caminho: o da comprensão e da tolerância, aceitação da diferença e vivência pacífica com a mesma. Tal como os profetas do Antigo Israel, que sábia e coerentemente souberam reter o lado bom de algumas das máximas do politeísmo, sem que no entanto se tivessem perdido no meio delas, assim os cristãos dos novos tempos vão beber a outras fontes. O Espiritismo já deu o exemplo ao fazer de Sócrates e Platão os precursores da sua doutrina e do Cristianismo, sem que no entanto Jesus tenha ficado para segundo plano, ou que essas entidades sejam cultuadas. O Espiritismo adora a Deus e aceita Jesus como o seu profeta, não descurando o importantíssimo papel de tantos outros.
Com a renovação imperiosa do Cristianismo, a segunda vinda de Cristo está à porta. Do seu Corpo Místico fazem parte todos aqueles que desejam viver em amor e paz. Essa vinda não será física, mas em Espírito. Ela consistirá na vitória de todos aqueles que tiveram força e coragem para implementar a verdadeira religião de Jesus, o Cristo, a saber, a Religião do Amor, e esta consiste num movimento universal de todos os que fazem do Bem a sua razão de viver.
Como fazê-lo, num mundo de profundas convulsões sociais, com os seus mesmos interditos que dia após dia se multiplicam, de direitos que perigosamente se perdem e de deveres que brotam que nem cogumelos? Que cristianismo queremos construir e deixar de herança para as gerações vindouras? Antes de mais torna-se imperioso construir uma mentalidade cristã que, por sua própria natureza, consiste num ideal fraterno. O mundo nunca precisou tanto dos cristãos como hoje. Onde é que eles estão? Quem são eles? No dizer de Jesus são dois ou três. Mas será que eles têm assim tanta força, são tão poucos que passarão despercebidos!? Bem, se tivermos em consideração que não dizem Senhor! Senhor!, mas fazem a vontade do Pai, que perdoam incondicionalmente, que não apontam o argueiro no olho do outro, que ajudam todos os que deles se aproximam, que pregam a alegria, a liberdade e o amor, que dão sem esperar recompensa, que tudo agradecem a Deus, que não prestam culto a outros seres senão a Deus, que não matam, não mentem e não levantam falso testemunho de ninguém, que respeitam a família, defendem a vida, lutam pela dignidade, que vivem em comunhão fraterna e oram a Deus fervorosamente, que procuram a santidade, então não tenhamos dúvidas, esses dois ou três são milhões na força e na coragem, são luz e voz da sublimidade do amor.
Precisa-se, e rapidamente, de repensar o papel da fé, do messianismo, do que significa levar Cristo ao mundo, o que, aliás, ainda não aconteceu. Não é certamente pela mão da intolerância, mas pela voz sublime do homem renovado. Queremos um Cristianismo forte, virado para Deus, o Único, o Altíssimo.Queremos o Messias, queremos a fé libertadora. Precisamos de nos colar que nem lapas a esses dois ou três para sermos como eles.
E queremos uma nova História Cristã, a de um movimento que não exclua Jesus, onde este se reveja e não de que se envergonhe, tão simplesmente o de um messianismo com verdade.
Se o mundo já não suporta o falso cristianismo, a começar pelos próprios cristãos, não é menos verdade que esse mesmo mundo é impensável sem o Cristianismo, porque é impensável sem o movimento de amor universalista que protagonisa. Desse mundo sedento de paz e amor, está emergente a voz de Cristo.
Mundo, o Cristianismo vai começar.
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Bibliografia consultada
NIETZSCHE, O Anticristo, Guimarães, Lisboa, 2011, 1-15, pp.15-32.
NOLAN, Albert, Jesus antes do Cristianismo, Paulinas, Prior Velho, 2010, Parte I, Catástrofe, cap. I, Uma Nova Perspectiva, pp.19-28.
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