UM “CENTRO DE REFERÊNCIA” NA UERJ (*) PREVENINDO DEMANDAS JUDICIAIS
Luiz Carlos D. Formiga
Professor Associado. Aposentado. Bacharel em Direito. Faculdade de Ciências Médicas - UERJ
RESUMO
Erros cometidos no laboratório de diagnóstico bacteriológico podem dar origem a ações judiciais.
Discutimos a importância da prudência, da diligência e da perícia na prevenção dessas demandas.
Como modelo, utilizamos o diagnóstico da difteria, discutimos as possibilidades do erro nas suas fases examinando a necessidade da identificação microbiana, além do gênero.
Analisamos os resultados práticos publicados em revistas especializadas, no Brasil e no exterior, pelo Centro de Referência Nacional do Ministério da Saúde, instalado na década de 1980, na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desta forma, encontramos as orientações para maior precisão no diagnóstico desta doença.
Essas orientações dirigidas aos Laboratórios de Saúde Pública atingiam de forma tangencial o aspecto social e legal. Pudemos anotar os entraves e os problemas ligados a prevenção de surtos epidêmicos e também as soluções apontadas para capacitar e apurar a perícia dos profissionais envolvidos nesta prática biomédica, onde a imprudência, negligência e a imperícia devem ser extirpadas. (*) http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=338 Palavras chave: Microbiologia Médica, Bioética, Biodireito 1.
INTRODUÇÃO.
Apresentação do tema Há uma crescente preocupação internacional na identificação de princípios universais, tendo como base valores éticos compartilhados. Essa inquietação nos pede para identificar os desafios que vem surgindo com a ciência e a tecnologia e a pensar na responsabilidade com as futuras gerações. Por outro lado, desafios antigos aparentemente afastados insistem em retornar. Questões da Bioética, que eventualmente apresentam dimensão internacional, precisam ser examinadas considerando princípios estabelecidos nos tratados e convenções, uma vez que podem apresentar impacto sobre comunidades (12, 17).
Tanto no campo biomédico, quanto no bioético importa não esquecer que o indivíduo inclui em sua natureza dimensões diversas, tais como as biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais. Essas dimensões nos fazem crer que a sensibilidade moral e a reflexão ética são partes do processo de desenvolvimento científico e tecnológico, onde a Bioética e o Biodireito (3, 23) desempenham papéis importantes. Todo ser humano deve se beneficiar dos padrões éticos de maior nível nas ciências biomédicas (3) Este estudo trata da prudência, da diligência e da perícia no laboratório de Bacteriologia Clínica que por sua especialidade, manipula materiais patológicos colhidos de seres humanos e portan
11 to, deve também considerar a dimensão social e a legal. Dirigido aos Laboratórios Centrais de Saúde Pública e aos laboratórios de instituições públicas e privadas que desenvolvem atividades de bacteriologia clínica, procura valorizar e promover o respeito pela dignidade da pessoa humana representada por materiais que foram colhidos da intimidade de seus corpos, de modo a assegurar o respeito pela vida.
Este artigo procura incentivar o diálogo multidisciplinar entre os que acreditam que o estar doente representa uma cidadania mais onerosa, com destaque para o emocional. Aponta para a dimensão biológica sem esquecer o aspecto biográfico do paciente. Enfatiza alguns princípios, entre outros, por causa de sua imediata relevância. Assim, a dignidade humana e os direitos humanos foram privilegiados, pois devem ser respeitados pelos que estão envolvidos nesta prática laboratorial. Fazendo surgir a reflexão entre o benefício, que deverá ser maximizado e o dano a ser minimizado. Considerando a onerosidade do paciente, chama a atenção para o respeito pela vulnerabilidade aumentada de determinados grupos humanos, eventualmente representados, nas doenças infecciosas, pelas populações mais carentes da comunidade.
Os Laboratórios de Saúde Pública são representantes dos serviços públicos junto à população geral e devem ter em mente a promoção da saúde e o desenvolvimento social que são os objetivos centrais dos governos. Precisamos considerar que um dos direitos fundamentais do ser humano é o de usufruir o mais alto padrão de saúde. Só aparentemente o laboratório de bacteriologia médica apresenta papel secundário, pois existem outras situações onde pode desempenhar papel de relevância, o que adiante discutiremos. A conduta técnica do laboratório ganha maior destaque quando a clínica se encontra em dúvida, tendo que decidir pela aplicação da terapêutica específica, o que pode desencadear efeitos secundários, como o choque anafilático. A Difteria e a potente virulência de seu agente etiológico - Corynebacterium diphtheriae, está minuciosamente descrita (11, 13, 14, 19, 20, 21, 22). O bacilo diftérico pode causar infecção em vários órgãos e tecidos, mas a forma clínica mais freqüente e mais grave é a faríngea, denominada angina diftérica. As manifestações são principalmente devidas a uma potente exotoxina. Amostras não produtoras de toxina também podem causar o processo infeccioso. Assim, outros fatores, distintos da toxina, devem ser considerados. O diagnóstico laboratorial é feito com material retirado das lesões existentes, exsudatos de orofaringe e de nasofaringe, que são localizações mais comuns, ou de outras, conforme o caso, por meio de swab, antes da administração de qualquer terapêutica antimicrobiana. A bacterioscopia tem apenas valor presuntivo. A cultura deve ser feita por semeadura da secreção nos meios específicos. As colônias isoladas e suspeitas irão para teste de triagem, produção de porfirina e toxina. Amostras não produtoras de toxina, porém fluorescentes, necessitam estudo adicional, pois podem ser bacilos diftéricos atoxinogênicos, rotulados como “avirulentos“ porque produzem manifestações clínicas discretas e localizadas, embora em algumas ocasiões produzam doença grave. O erro técnico pode ocorrer em diversas fases da evolução clínica da doença. B. Justificativa e objetivo do estudo. O erro biomédico laboratorial pode casar confusão no momento da escolha do tratamento, o que pode ter funestas conseqüências em relação à saúde do paciente. Embora já se tenha dito que “o Brasil não está longe de atingir a perfeição no tratamento de saúde”, a realidade é que hoje o nosso sistema de serviços públicos está em fase de declínio. Nossa Rede de Laboratórios de Saúde Pública apresenta carências e diferentes realidades. As condições de trabalho encontradas em vários laboratórios podem ser inadequadas. Em se tratando da Microbiologia Clínica o erro técnico também pode ocorrer pela ausência de especificação ou pela desvalorização do achado laboratorial.
Todo cidadão tem responsabilidades para que seu tratamento aconteça de forma adequada. O laboratório, muitas vezes, é veículo imprescindível para alcançar esse objetivo. Com a ajuda de um destacado caso clínico ocorrido em 2001 (18) vamos iniciar a discussão sobre a responsabilidade civil do profissional de laboratório. Estamos diante de um diagnóstico, onde o bacilo diftérico pode ser confundido com outros micro-organismos (12, 17), situação que, por imprudência, imperícia ou negligência, pode conduzir o profissional ao erro técnico. Alertá-lo em relação a eventuais demandas judiciais é tarefa de relevância e certamente estaremos contribuindo para incentivar o estudo continuado. Nosso objetivo é analisar a necessidade de especificação bacteriana para o adequado tratamento e evitar aborrecimentos judiciais.
Almejamos introduzir a discussão sobre o erro laboratorial e a Responsabilidade Civil no diagnóstico bacteriológico na Microbiologia Médica (4). C. Hipótese e questão problema. O Centro de Referência Nacional produziu eficaz, eficiente e efetiva orientação para o diagnóstico laboratorial da difteria (6, 7, 8). Isto parece relevante e também fundamental na prevenção do erro do profissional e das demandas judiciais. A orientação oferecida pelo Centro de Referência de Difteria do Ministério da Saúde se cumprida com prudência, diligência e perícia será capaz de mitigar o erro laboratorial e prevenir essas demandas? A imprudência, a negligência e a imperícia podem conduzir ao erro no diagnóstico laboratorial microbiológico. Quais as implicações em termos de Responsabilidade Civil deste profissional de saúde? D. Referencial teórico Apesar do amplo conhecimento sobre a etiopatogenia, aspectos clínicos, terapêutica, e profilaxia da difteria, a doença pode ser ameaça nos locais de vacinação deficiente; de controle inadequado dos contatos e quando do retardo do diagnóstico-tratamento. A letalidade diminui na vigência do diagnóstico precoce e instalação rápida da terapêutica específica. No diagnóstico laboratorial, a bacterioscopia possui valor presuntivo. A cultura deve ser feita em meios específicos.
As colônias suspeitas deverão
12 ser submetidas a vários testes. Nestas fases podemos encontrar o erro laboratorial (5,9). As infecções subclínicas e o estado de portador são importantes, uma vez que concorrem para a circulação do bacilo na comunidade. A pele pode ser um reservatório de potencial importância na manutenção da circulação do C. diphtheriae, uma vez que ele pode ser isolado de vários tipos de lesões cutâneas, que são mais contagiosas do que as do trato respiratório. No momento do exame dos contatos, o laboratório fica exposto ao erro. A microbiota de associação é muito numerosa e sempre rica de bastonetes Gram- positivos, que se assemelham ao agente etiológico. Nessa hora o profissional do laboratório é muito solicitado e necessita de cuidado redobrado para que não desvalorize o achado microbiológico, contribuindo de forma negativa na epidemiologia e letalidade da doença. Através da leitura das orientações do Centro de Referência procuramos as características de eficácia.
Eficiência e efetividade, uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz a saúde como direito social em mais de 20 dos seus dispositivos, sendo ela um direito subjetivo exigível do Estado que tem o dever de assegurá-lo (2). Para apurar a responsabilidade do Poder público precisamos atentar para os conceitos de saúde, vida e dignidade da pessoa humana, considerada como um ser multifacetado. O direito à saúde é uma das formas de garantia do direito à vida, cláusula pétrea, art. 5º da CRFB/88 (2). Diante da prestação do serviço de saúde devemos interpretar a norma constitucional com o sentido que maior eficácia lhe conceda, com o objetivo de preservar a vida e a dignidade da pessoa. Há uma relação entre os conceitos de direito à vida e dignidade da pessoa humana com os serviços de saúde.
Qualquer atitude que se origine do Poder Público em detrimento do direito à vida pode ser catalogada como um desrespeito à dignidade do paciente. A garantia ao direito à vida pode necessitar de exames laboratoriais complementares adequados. Os dispositivos constitucionais apontam para uma ampla cobertura em matéria de saúde. Podemos considerar que qualquer omissão do Estado na garantia a esse direito, sendo comprovado o nexo de causalidade, permitirá a propositura de medidas judiciais. A responsabilidade civil do Estado é de natureza objetiva (art. 37, § 6o, da CRFB/88). Assim, demonstrado o nexo causal deve o Estado responder pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, no âmbito de seus hospitais, independente da prova de dolo ou culpa . O hospital ao fornecer serviços de saúde médico-hospitalares está sujeito às normas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8078/90).
A relação jurídica estabelecida com os seus pacientes é contratual, legítima relação de consumo, com as conseqüências legais que daí decorrem. As atividades complementares, ao atendimento do paciente, também ficam protegidas pelo manto deste contrato. Entre elas estão algumas como o serviço de controle de infecção hospitalar, de enfermagem, de limpeza e serviços complementares, de diagnóstico (laboratório de Bacteriologia Clínica e outros). Vamos recordar que a obrigação incluída neste contrato do hospital é de meios e não de resultados (4). No entanto, a assistência médica deve ser a mais adequada possível, devendo dispor de pessoal competente, nos procedimentos oferecidos aos seus pacientes nos atendimentos, uma vez que no contrato está implícita a cláusula de incolumidade, que tem característica de uma obrigação de resultados. Vamos lembrar que a administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá a diversos princípios. Principio da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade descritos no Art 37° da CRFB (2) e de onde, diante dos nossos propósitos, destacamos os princípios da eficiência e especialidade. A lei 9784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo, no âmbito da Administração Pública Federal, nos relembra o princípio da eficiência e enfatiza o do “interesse público”, que deve ser obedecido pela Administração Pública.
2. METODOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO
Os dados foram colhidos do Manual Técnico do Centro de Referência Nacional, do Ministério da Saúde, publicado na Revista Brasileira de Patologia Clínica (6,7,8), elaborado para a identificação de micro-organismos corineformes; dos exames laboratoriais realizados neste Centro e, ainda, dos relatos de investigações realizadas no âmbito do seu Laboratório de Pesquisas. Estes resultados estão divulgados em revistas técnicas de circulação nacional e internacional, encontradas na lista das referências bibliográficas.
Para analise e avaliação, consideramos o diagnóstico laboratorial de certeza (21). O Serviço de Microbiologia e Imunologia, FCM-UERJ, foi convocado pelo Ministério da Saúde para implantar o Centro de Referência Nacional na década de 1980. Logo em seguida o Ministério deu inicio ao Programa Nacional de Vacinação da População Infantil. Essa iniciativa reduziu gradativamente o número de casos de difteria.
Registra-se nos anos 90 menos de 10% do número de casos que foram registrados na década anterior. Nesta época, em 11 de setembro, surgiu a Lei de Proteção e Defesa do Consumidor. Foi no ano de 1986 que surgiu a orientação do “Centro de Referência” no “Manual Técnico”, publicado em três números sucessivos da Revista Brasileira de Patologia Clínica (6,7,8), hoje, Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial. Podemos encontrar algumas comunicações apresentadas em congressos, sendo algumas no exterior. Da análise desses artigos, percebemos modificações em relação ao que era padronizado nos livros técnicos. Essas mudanças provenientes dos trabalhos realizados pelo Centro de Referência introduzem técnicas para facilitar a realização dos exames. Destinam-se principalmente aos que estão localizados nos países emergentes, onde as práticas laboratoriais são frequentemente realizadas em condições menos favoráveis, quando são comparadas com aquelas encontradas em países já desenvolvidos.
Na Constituição brasileira (Art 196), a saúde é dever do Estado, que deve garantí-la mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e outros agravos (2). Desta forma, se torna explícita a sua multi- causalidade e ainda se coloca de forma clara a determinação social, econômica e política do processo saúde-doença. A difteria, embora seja doença bem estudada, ainda pode ameaçar a população brasileira. Há perigo se a cobertura vacinal não atingir níveis satisfatórios. Soma-se a isso a desinformação das equipes médicas em relação a sua incidência, o que pode dificultar o diagnóstico clínico precoce e retardar a soroterapia.
Apesar de preconizada pelo Ministério da Saúde, a vacina para adultos parece não ser suficientemente conhecida entre nós, o que não acarretou conseqüências mais sérias. No entanto, um número alarmante de casos de difteria foi descrito na Rússia e em outros países, atingindo inclusive profissionais de saúde (18, 21). A prevenção de doenças como a difteria é fruto de desenvolvimento tecnológico amplamente conhecido e acessível, apesar disso o controle ou a erradicação desta antiga doença transmissível não é ainda observado em inúmeros países como a Nigéria e o Paquistão. No setor é preocupante encontrar profissionais desinformados uma vez que saúde também é informação, elemento fundamental no processo de educação. Deve-se recomendar uma maior atenção em relação à imunização, avaliando- se melhor a qualidade das reciclagens e treinamentos que são realizados, além de melhor supervisão, assegurando o cumprimento das normas existentes. Os serviços de saúde nos países em desenvolvimento podem não estar adequadamente vinculados às mães para poder administrar às crianças a vacina de que necessitam na idade apropriada; as necessidades técnicas de um Programa Nacional de Vacinação exigem conhecimentos no planejamento, na administração e uma supervisão prática dos serviços.
A colaboração de uma população bem informada, a obtenção de fundos e o fortalecimento efetivo dos serviços básicos de saúde são objetivos a serem alcançados. O laboratório enfrenta diversos desafios. Por exemplo, uma parte das amostras da bactéria que causa a difteria no Brasil é bioquimicamente diferente daquelas que são encontradas nos países desenvolvidos. Entre nós, o C. diphtheriae é fermentador de sacarose, em contraste com os isolados em outros países. A capacidade de fermentar o açúcar pode causar confusão e induzir laboratórios desprevenidos a oferecer resultado genérico. Isso seria suficiente para nos alertar para a necessidade da perícia na prática laboratorial médica. Uma outra observação reforça esta necessidade. Trata-se do processo infeccioso causado pelo bacilo que perdeu a capacidade de produzir toxina. Casos de endocardites com bacilos não produtores de toxina foram descritos em diversos países no mundo, sendo isolados em hemoculturas. Nesses casos é possível que o agente etiológico possa ser identificado como difteróide, considerado mero contaminante.
O Centro de Referência chama a atenção para essas amostras que não produzem toxina, mas que produzem a porfirina fluorescente. Ausência de produção de toxina não significa ausência de patogenicidade. Por outro lado, num caso de endocardite produzida por micro-organismo produtor de toxina não foram observados quaisquer sinais de toxemia (12). Voltando aos micro-organismos “não produtores” de toxina, podemos inferir que esses casos clínicos sem a presença de toxemia apontam para outros mecanismos de virulência existente nessas amostras, que circulam principalmente em países onde a imunização possui níveis adequados (12,14,19,20). A circulação de um micro - organismo não produtor de toxina não estimulará o sistema imune da população geral, não haverá a manutenção de níveis de anticorpos antitóxicos circulantes suficientes para deter, ou mitigar um processo de infecção mais adiante, na idade adulta. A ausência de vacinação específica de 10 em 10 anos poderá dar origem a indivíduos susceptíveis de idade mais avançada e favorecer o surgimento de casos entre pessoas mais idosas, como ocorreu na Europa na década de 90.
A vacina é potente meio utilizado na erradicação da doença, mas o bacilo parece irredutível no seu objetivo de continuar circulando na população geral, concentrando-se em um segmento social, onde determinadas condições parecem estar satisfeitas. Pesquisa realizada no município do Rio de Janeiro revelou que o número de portadores de bacilo diftérico é cinco vezes mais alto em algumas regiões do subúrbio carioca do que na sua Zona Sul. A desnutrição, hábitos higiênicos inadequados e lesões cutâneas ocasionadas por mordidas de insetos ou por seringas são alguns dos fatores que facilitam a aderência e a infecção pelo micro- organismo. Este estudo observou diferenças entre o número de portadores, do C. diphtheriae toxinogênico e atoxinogênico, entre escolares do município com relação a localização das escolas. Demonstrou que a população escolar da zona oeste apresentou índices bem mais elevados comparados com os da zona sul, onde o nível sócio-econômico é mais elevado (13).
Esse trabalho apresentou uma das maiores casuísticas do mundo sendo examinados 1007 escolares no Centro de Referência. Já foi enfatizada a dificuldade encontrada por causa da semelhança entre o bacilo patogênico e outras espécies encontradas na microbiota humana. Vamos recordar dois problemas: (1) cepas com capacidade de fermentar sacarose (Brasil), que o assemelha à corineformes isolados de diversos nichos ecológicos humanos; (2) a grande freqüência de amostras não produtoras de toxina, principalmente isoladas de portadores no trato respiratório e nas lesões cutâneas. Anotemos também que o micróbio já foi isolado no Centro de Referência a partir de material proveniente de úlceras leishmanióticas e até mesmo do líquido espermático, onde poderia ser confundido com um “difteróide” (contaminante). Por esse motivo os micro-organismos que são bastonetes Gram-positivos produtores de porfirinas fluorescentes, no meio B de King, sob luz U.V. (365 nm) e fermentadores de maltose, são considerados como bacilo diftérico, até prova contrária.
Estivemos desenvolvendo este raciocínio objetivando o diagnóstico da doença clássica, a faringite diftérica, que é causada pela espécie tipo do gênero.
Sob o ponto de vista clínico, a negligência dos “difteróides” pode nos conduzir a resultados desastrosos. No laboratório também não é diferente onde temos outro elemento complicador, uma vez que outros corineformes podem estar envolvidos em diversos quadros clínicos, que precisam ser valorizados. Isso aponta novamente na direção da prudência, da diligência e da perícia como prevenção de problemas diante dos tribunais. Podemos citar algumas doenças onde são descritos estes agentes etiológicos semelhantes ao bacilo diftérico e que apresentam alta taxa de resistência aos antibióticos: infecções do trato urinário, bacteremia ou endocardite. Outras infecções sistêmicas, como pneumonia ou peritonite; infecções em feridas cirúrgicas, artrite séptica e osteomielite vertebral; abscesso mamário, uretrite não gonocócica, epididimite, linfadenite granulomatosa, meningite em neonatos, peritonite em pacientes submetidos a diálise peritoneal e infecções endoftálmicas. Diante desses quadros infecciosos parece justificado o interesse de um Centro de Referencia com a educação continuada e ainda com as contribuições da Bioética e do Biodireito (3, 4, 23).
O que significa o rótulo “difteróides”? A prática laboratorial permite afirmar que são bactérias oportunistas potencialmente patogênicas pertencentes à própria microbiota humana normal. Dados acumulados indicam a relevância de se identificar o gênero e eventualmente as espécies. O reconhecimento dessas infecções pode depender da perícia que possuem os laboratórios na sua capacidade de proceder a especificação. Um dos obstáculos encontrados é que mais de 40% das amostras dos bastonetes Gram-positivos pleomórficos não pertencem ao gênero Corynebacterium . Voltemos ao ponto central, o diagnóstico laboratorial da difteria. O isolamento em cultura pura necessita de pelo menos três meios de cultivo diferentes na garantia de um resultado satisfatório (95%).
Esta prática mais onerosa é um desestímulo aos laboratórios que carecem de recursos porque todos os meios de cultura possuem prazo de validade e decresce o número de casos diante das medidas preventivas. No entanto, na vigência de um surto epidêmico essas práticas são absolutamente necessárias. Uma técnica desenvolvida também na FCM-UERJ para a pesquisa de toxina “in vitro”, comparada com a que explora o efeito citopatogênico da toxina em culturas de células, também foi apresentada no exterior (15,16). Devemos ainda admitir a possibilidade da doença em uma criança ou adulto vacinado. Apesar de se tratar de uma linha de pesquisa tradicional, só recentemente descrevemos um caso de isolamento de adulto vacinado . Neste caso, o diagnóstico laboratorial mostrou-se fundamental, uma vez que somente após a identificação bacteriana o tratamento específico foi iniciado, com boa resposta clínica (18). Em difteria a clínica é soberana, mas esse dado reforçou nosso entendimento de que devemos perseguir de forma rápida o diagnóstico de certeza. Sob o ponto de vista bioético este relato reforça a idéia de que a medicina é uma profissão moral.
O médico interfere no campo do sujeito, no seu corpo, em sua vida pessoal, nas suas emoções e na sua economia. Em um Centro de Referência não podemos pensar diferente, pois há sempre um paciente, um aluno, uma pessoa representada naquele exame ou aula. A responsabilidade do docente pesquisador, em uma Faculdade de Medicina, não está apenas na pesquisa de ponta. A Lei de Defesa do Consumidor vem sendo invocada para dar suporte às pretensões indenizatórias de pacientes que buscam socorro nas barras dos tribunais: “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços”. Daquele diploma legal, podemos destacar este início do artigo 14 (Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990). No caso acima, por se tratar de um adulto vacinado, o tratamento especifico foi retardado pela dúvida no diagnóstico clínico. Após ampla vacinação e erradicação dos países desenvolvidos, a difteria praticamente desapareceu das cogitações da maioria dos pesquisadores no mundo. Apesar de bem estudada, surgiu entre nós observação de certa relevância que é a descrição de uma transialidase no C. diphtheriae. Esta enzima é importante na interação bactéria-hospedeiro. Não menos importante é o inesperado encontro da capacidade invasora em um micro-organismo patogênico de baixo poder invasor (14).
Caiu vertiginosamente o número de notificações no Brasil, estando longe das cifras encontradas nas décadas anteriores. Hoje não são descritos surtos nas diversas regiões do território nacional. No entanto, na prática laboratorial devemos relembrar que o bacilo já foi encontrado em sítios incomuns como ouvidos, conjuntiva e vagina e que a colonização de pacientes adultos vem despertando grande interesse. Em nosso laboratório, já foi também isolado de espermocultura e de úlceras leishmanióticas (13).
Embora o micro-organismo continue apresentando sensibilidade a maioria dos antimicrobianos utilizados na clínica ele foi isolado no Rio de Janeiro de um caso de endocardite mitral fatal, resistente a terapia com a penicilina (12). O micro-organismo isolado demonstrou produção de exotoxina “in vitro”. No entanto, enfatizamos que não foram encontrados sinais clínicos visíveis de toxemia, um dado complicador para o médico. Hoje sabemos que alguns clones podem apresentar propriedades invasoras, mas porque não produziu a toxina “in vivo”?. Embora o número de casos notificados seja pequeno, quando comparado com o encontrado em décadas anteriores, o seu isolamento pode deixar microbiologistas repletos de expectativas, quando o material clínico enviado ao laboratório é proveniente de instituições onde estão internados pacientes que apresentam baixa resistência imunológica. Por exemplo, o Centro de Referência descreveu, em 2001, que no laboratório do Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro, foi isolada uma amostra toxinogênica de C. diphtheriae, de uma lesão ulcerada de carcinoma infiltrado basalóide, de um paciente de 45 anos de idade, no período pré-operatório.
Este bacilo pertencia à variedade mitis fermentadora de sacarose(17).
Esses achados nos permitem reafirmar a necessidade da cuidadosa identificação microbiana, conduta particularmente importante, como dito anteriormente, porque outros “corineformes”, resistentes a antimicrobianos, são identificados como agentes etiológicos em diversos quadros clínicos e não devem ser negligenciados (13). Melhores serão os resultados se estivermos diante de um profissional apresentando mestria, qualidade de perito, por isso no laboratório a prudência, a diligência e a perícia devem ser estimuladas em todas as oportunidades. Não podemos permitir raciocínios em bases falsas. Ao acreditar que uma doença, como a difteria, desapareceu de nosso ambiente estamos correndo o grave risco de não diagnosticá-la a tempo de poder bloquear a ação da poderosa exotoxina. No laboratório do hospital, diante de uma espermocultura, de uma hemocultura ou ainda diante de uma lesão de carcinoma, onde foram encontrados associados cocos piogênicos, o bacteriologista pode rotular o patogênico como “difteróide”(17). Diante da realidade brasileira e sob o ponto da vista de saúde pública, o diagnóstico clínico precoce, o diagnóstico bacteriológico adequado e a vacinação de toda a população susceptível continuam sendo importantes desafios.
Após três décadas de controle absoluto da doença, a difteria ressurgiu em países europeus de maneira epidêmica. O ocorrido na Federação Russa, com mais de 150 mil casos relatados no período de 1990 a 1999, transformou-se no maior surto recente de difteria. Nele foram confirmados 5 mil óbitos, sendo a maioria deles (75%) em adultos (17, 21) Cientistas de vários países voltaram sua atenção para doença. Em junho de 2000, numa reunião promovida pela Organização da Saúde Mundial Européia, os especialistas de mais de 30 países se mostraram preocupados com o risco de uma eventual epidemia generalizada. Naquela oportunidade o Brasil se fez representar pelo Centro de Referência (15). Em termos de prudência, diligência e perícia nossos laboratórios deverão ter como princípio o compartilhar benefícios. Resultados de pesquisas científicas e suas aplicações práticas devem ser divididos com a comunidade científica internacional e a sociedade como um todo. Após o surto epidêmico na Europa, como medida preventiva o Brasil passou a aplicar a vacina tríplice bacteriana na população acima de 7 anos.
Nestes dias de crise global é importante incentivar a vacinação de adultos. A situação atual da população brasileira guarda certa semelhança com a da Europa daqueles dias em que o bacilo infectou mais adultos do que crianças. Estudos realizados no exterior demonstraram que 50% dos adultos apresentavam níveis baixos de anticorpos protetores antitóxicos. Por esse motivo recomendou-se a revacinação de adultos e em particular a imunização dos profissionais de saúde. O risco de exposição, na área de saúde, a este patogênico e em particular nos laboratórios de Bacteriologia nos deixa apreensivos. Nossos laboratórios podem estar descartando os bastonetes Gram-positivos, agentes de infecção, após rotulá-los como inofensivos “difteróides”. Preocupação adicional é saber como andará a imunidade de nossos médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e estudantes de saúde. Pediatras e bacteriologistas talvez nem tenham renovado a vacinação nos últimos dez anos.
3. CONCLUSÃO Neste trabalho apontamos para eventual demanda judicial, que pode surgir diante do eventual erro do profissional no Laboratório de Bacteriologia Médica. Por outro lado, após a análise das recomendações feitas pelo Centro de Referencia Nacional que também estimulam a prudência, a diligência e a perícia no âmbito da atuação profissional, podemos concluir. Apesar das numerosas dificuldades encontradas num país emergente, não estaremos inferiorizados mesmo diante das facilidades disponíveis nos laboratórios localizados em países do primeiro mundo.
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