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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

PROJETO OU PROJÉTIL? POMPOM OU POM-POM?


LUCIANO DOS ANJOS

Rio, 25.1.2011

(Dia em que, segundo a tradição, Paulo viu o Cristo na estrada de Damasco)


Desabrido, esse movimento espírita, que se jacta das maiúsculas, vai seguindo sua trajetória de audaciosos descompassos doutrinários. Está cabendo de tudo no caldeirão tropicalista. Se a vendagem de santinhos, camisetas, chaveirinhos chegou a chocar os espíritas sérios, agora vão engulhar de vez. Já implantaram a doutoral Faculdade de Espiritismo. Agora, exonerados todos os escrúpulos, temos a mais nova e brilhante estratégia para faturar nos moldes da logística da Apostólica Romana e da Igreja Universal do Reino de Deus. Já está montado (ver http://www.clubedearte.org.br/obem.html) um esquema para lançamento do cartão de crédito dos espíritas. Fluídico provavelmente. A organização destinará 13.3% do lucro líquido para obras assistenciais. Os outros 86,7%... bem, deixa pra lá. Mesmo porque, o mais importante não é saber se esse frankenstein capitalista vai ser administrado ou não com total transparência e lisura. Tratando-se de espíritas, não tenho por que duvidar de que, nesse aspecto, não acontecerão surpresas desagradáveis. Afinal, parto da premissa de que a doutrina já forrou a todos nós desse tipo de tentação. Assim, não é esse o punctum salliens da questão nessa esdrúxula e perigosa iniciativa, mas princípios sagrados e consagrados que não podem ser menoscabados. As paróquias católicas e os templos evangélicos também reservam um percentual da sua farta coleta para fins assistenciais. Correto e verdadeiro; mas... e os valores morais-religiosos? O pior é que neste nosso caso ainda usam o nome respeitável de Adolfo Bezerra de Menezes para servir de argumento de venda do produto. O projeto (ou projétil?) já surge ornado de pompom acetinado (ou pom-pom militar?), para melhor encantar e atrair os distraídos. Nada mais vendável do que o nome consagrado de Bezerra de Menezes, que acaba de descer das alturas da sua condição de espírito altamente evoluído para, em comovente mensagem, estimular e apoiar a jogada financeira. O cartão de crédito se chama OBEM, sigla de Organização Bezerra de Menezes, o benfeitor que carimbou o negociarrão. Como acreditar? Por qual médium? Onde? Em que reunião?

Mas Bezerra não é aquele inesquecível médico dos pobres, que deu o anel de grau para ajudar uma infeliz mulher à sua porta com dificuldades graves? Ele, que sempre deu, que nunca pediu nada para si, que largou o mundo da política para se preservar das implicações conjunturais dos acordos e negócios, logo ele resolveu agora apoiar o “cartão de crédito dos espíritas”? Naturalmente sua próxima manifestação será de garoto propaganda, induzindo os espíritas a aderir em massa. Afinal, Bezerra sempre foi muito bom de marketing. É usado em eleições; por que não ser aproveitado no lucrativo ramo dos negócios?

E depois, quando o pai ou a mãe de família por qualquer razão não puder quitar a fatura? Bezerra vai instruir para que alguém ceda mais um anel, ou, como fez o pai do André Luiz com o amigo Silveira, vai mandar para o cartório executar a dívida, tomar até a geladeira, a televisão, a bicicleta do filho do devedor? E daí? Devedor que é devedor não tem de escapar da cobrança. Quem mandou se endividar? Tomasse vergonha e não gastasse sem poder. Agora que se arranje com a lei. Que seja até despejado, com família e tudo. É o carma. A Organização e seus ilustres dirigentes é que não podem arcar com o prejuízo. “Business is business”.

Esses aspectos legais são verdadeiros. Afinal, em nosso mundo o que conta é o dinheiro e, em tese, ninguém deveria estourar seu orçamento, sendo justo que quem age com premeditada desonestidade tem de ser punido; mas eu juro que, tratando-se de gente de bem, eu não gostaria de estar no papel de Catão. Será que Bezerra vai topar?

Recordo aqui a atitude do grande espírita Armando de Oliveira Assis, quando presidente da Federação Espírita Brasileira e de quem eu era assistente. Certo funcionário, muito antigo, desviou dinheiro da Livraria. Descoberto, um diretor, em reunião de Diretoria de que eu participei, expunha o caso e com ênfase queria que o caso fosse levado para a esfera policial. Alegava que a instituição era filantrópica e que o erro tinha de ser punido com severidade. Depois de ouvir calmamente o intransigente diretor, o Armando deu a palavra final (ver na home-page do Grupo dos Oito, www.grupodosoito.com.br, em que cito a decisão, ao lado de outras atitudes dele):

- Concordo com qualquer solução, menos o encaminhamento do caso à Policia.

O empregado foi demitido por justa causa, dispensado de repor o dinheiro – que nem teria mesmo condições – e antes de partir foi chamado para longa conversa sobre os valores morais prescritos principalmente pela doutrina espírita. Incumbido da tarefa, o diretor responsável pela Livraria, Lauro de Oliveira S. Thiago, confessou depois ter sentido grande paz de espírito com a solução dada pelo presidente da FEB. Digo, de passagem, que o Lauro era uma figura de grandes qualidades humanas e morais. E o Armando de Assis, bem, o Armando era o Armando.

Prosseguindo sobre o cartão de plástico fluidificado, lembro que em meu livro O Atalho previ essa situação e outras mais, que só servem para prejudicar a força seminal do espiritismo. Só os cegos não querem se dar conta do rumo que esse movimento espírita tomou, com o aplauso das grandes instituições. Daqui a pouco surgirá também o Banco Ambrosiano Espírita e, como eu mesmo vi, lá na sede de “são” Pedro, logo na entrada da capela Sistina, há a Caixa de Câmbio para que os fieis troquem ali seus dólares e o Ambrosiano encha a burra. (A propósito: o Banco Ambrosiano, propriedade do Vaticano, já esteve envolvido num dos maiores escândalos mundiais de desvio de dinheiro. Mero registro histórico.)

Bem, essa é a realidade mais festeira nos arraiais do espiritismo. E há, desde já, muita gente esclarecida, de ótima índole, de grande coração, que está achando a ideia formidável. Afinal, todos concordamos em que as instituições espíritas têm despesas e precisam de recursos... Contudo, vejo a ideia glaçada de caridade suspeita. Que estará pensando Kardec? (Talvez meditando nas razões parecidas de seu conterrâneo Octave Mirbeau, quando escreveu, em 1903, sua peça “Les Affaires sont les Affaires”, origem da mais corriqueira expressão inglesa; ou, naquele momento em que tirou do próprio bolso o dinheiro para editar O Livro dos Espíritos.) Que estará pensando Jesus? (Talvez naquele dramático momento em que arriscou tudo e desafiou o poder dos negocistas ao entrar no Templo e clamar que a casa de Deus não podia ser transformada em casa de negócios.)

Mas,,, para quem está pensando exclusivamente no lado financeiro do “rendimento” do espiritismo, de que vale o pensamento de Kardec e de Jesus?

Vamos faturar que o mundo é capitalista! E Bezerra que se cuide.

(Uma nota: há uma espírita notável, entre aqueles que, por esperteza ou excesso de credulidade, estão engajados nessa ideia. C.B. é incansável trabalhadora em favor das causas espíritas. Honesta, seria, devotada ao Bem, dedicou a vida à divulgação do espiritismo e ao socorro aos necessitados. Alma nobre, idealista, movida sempre por um maravilhoso sentimento de humildade e solidariedade. Conversamos aqui em casa sobre esse projeto. Destaquei-lhe todas as inconveniências, mas não sei se a convenci do grande equívoco. Seja como for, considero-a acima desses momentos de tristeza patrocinados pelo atual movimento espírita. E o crédito de amor pré-aprovado que lhe concedo estará sempre muito acima dos limites desse ardiloso cartão de crédito espírita.)


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