Margarida Azevedo
Sintra/Portugal
Do cativeiro para a liberdade, da dor para a alegria, do desespero para a esperança, é tempo de reflectir sobre o significado da vivência pascal nos nossos dias.
Há séculos que este episódio se repete em rituais, orações e preceitos. É tempo de se lhe acrescentar a vivência interior, perceber o que significa ser livre, ser libertado por um Ser invisível, mas que se revela mediante a Sua presença na história do mundo. Por outras palavras, um deus que não seja mundo não é Deus; o Seu reino é o reino do mundo, porque um rei não governa apenas o seu palácio mas todo o reino.
Celebrar significa desnudar o lado invisível, assentar na terra a consciência de que Deus está presente em cada momento, em cada gesto, em cada palavra; celebrar o céu e a terra, não numa contiguidade, mas como uma unidade, uma realidade única. Vivemos num só reino.
É desta forma que a mensagem de Jesus entra no mais recôndito da alma, transformando cada homem e cada mulher num responsável espiritual, um líder da oração e da paz na sublimidade da fé. Ao lembrarmos a Última Ceia somos levados, inevitavelmente, à memória de Jerusalém daquele tempo. Eternizamos na nossa mente a acção dramática de um episódio que se tornará determinante da espiritualidade do ocidente: Aquele partir do pão, aquele vinho celebram o lado concreto da dimensão espiritual, o tangível, visível e palpável; o pão e o vinho que outrora foram da miséria, tomados num país estrangeiro, em cativeiro.
Por isso a comunhão de mesa é um gesto intimista, de alegria. Efectivamente, nada existe de mais feliz que partilhar uma refeição com amigos. De que serviria ressuscitar se, à chegada, não houvesse alguém de braços abertos numa recepção em alegria? Ressuscitar é aparecer perante alguém num abraço, num caminho qualquer, em qualquer momento. Todos os momentos são bons para ressuscitar. Os cristãos lembram a ressurreição como determinante para a sua fé. Ora é tempo de a lembrar como um episódio da carne que se tornou espírito, na medida em que o Espírito habita na Carne, em cohabitação, na partilha de uma origem comum. Em nome de um Deus que criou e se revelou ao mundo, a Vida Eterna é mundo, ao lado de quaisquer episódios na densidade do mundo. Na verdade, somos todos ressuscitados.
Assim, uma multiplicidade de questões pairam sobre as nossas cabeças: Onde está a nossa pedra removida? Que anjo no anunciam? Quem nos vem procurar ao túmulo? Quem nos unge e com que perfumes? Que caminhos escolhemos para dar de caras com quem não nos espera? Que mensagem transportamos? Que universo de esperança testemunhamos? Onde está o Sinai da nossa fé, da Lei que seguimos? A que povo pertencemos?
A fé transporta-nos para a procura do nosso Monte Sinai. Em cada Páscoa não é do Egipto que nos aproximamos, mas da Terra Prometida na esperança de que algo se revele, que apresente soluções viáveis e definitivas através das quais nos sintamos mais próximos de Deus, pois não são novas leis o que procuramos, mas novas propostas de vivência das que já temos, ajustes objectivos às realidades caóticas dos nossos dias.
Há muito que a Páscoa não tinha um sentido tão incisivo. Que o digam todos os que fogem da morte em cenários de guerra, os deslocados, os aflitos, os que choram, os desempregados, os que engrossam os números largos da indigência, os que servem para tudo. Que passsagem no catastrófico, no caótico, na indiferença? Que páscoa? Que esperança?
Onde está Deus?, pergunta-se sempre nos momentos-limite. Como viver desprovido de projecção para o amanhã se se vive um vazio, um presente oco? Deus parece continuar a ocultar-se. Porém, perguntar por Deus é perguntar por nós mesmos, a ocultação de Deus é a nossa ocultação: se me escondo de ti, então tornas-te oculto para mim. Onde está o futuro para Deus se não há homens/mulheres que O reflictam? Associamos a Deus o futuro, habitualmente. Esquecemos-nos de que a construção de Deus dentro de nós é presente. Nós não temos futuro pascal, temos um presente na memória de uma fé que é imortal.
Jesus desejou ir a Jerusalém pela Páscoa. Foi a pior altura para o fazer. A festa da Libertação para a Terra Prometida; o mesmo povo estava agora retido pelo o invasor romano, que, obviamente, não via tais festejos com bons olhos. A cidade transbordava de gente que a ela acorria vinda de todos os lados; o comércio dos animais para os holocaustos era intenso, circulavam diferentes moedas justificando a presença de numerosos cambistas.
Temos um crucificado que, na ignomínia da cruz, crucifica com ele a grande questão da humanidade: Porque sofremos? Simultaneamente, desfatalizou a lado errado da vida, num universo de esperança sem fim. Não estamos no sofrimento porque sim, estamos nele de passagem. A Cruz muda o sentido existencial do sofrimento para dar lugar ao conceito de eternidade em louvor e graça, no banquete do reino de Deus. O sofrimento é a realidade pascal no exemplo de Jesus juntamente com a lembrança de um povo que fora subjugado. Talvez seja essa a intenção de Jesus na ida a Jerusalém: não querer deixar de partilhar com os discípulos nem privá-los de celebrar a identidade do seu povo, porque a defesa de uma identidade acarreta, inevitavelmente, responsabilidades, e a maior de todas é, com toda a certeza, a construção da Paz.
Que a Páscoa seja cada vez mais uma celebração comemorativa, algo que aconteceu há muito, muito tempo, e não realidade de um presente no qual ainda há um povo que espera, ansioso, pela sua libertação.
Margarida Azevedo
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