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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Papa Francisco e os tabus: em questionário enviado às paróquias de todo o mundo, preparatório para a Assembleia de Bispos de 2014, ele toca em temas tabus como o casamento gay e a contracepção

FRANCiSCO FORA DA BOLHA -- O papa sabe que a salvação da Igreja passa pela compreensão do que os fiéis desejam e o que os incomoda — mas sem mexer na doutrina católica, evidentemente (Foto: AFP / Getty Images)
FRANCISCO FORA DA BOLHA — O papa sabe que a salvação da Igreja passa pela compreensão do que os fiéis desejam e o que os incomoda — mas sem mexer na doutrina católica, evidentemente (Foto: AFP / Getty Images)

Reportagem de Adriana Dias Lopes, com colaboração de Álvaro Leme e Renata Lucchesi, publicada em edição impressa de VEJA
O PASTOR VAI AO REBANHO
A Igreja de Francisco é definitivamente outra. Em questionário enviado às paróquias de todo o mundo, preparatório para a Assembleia de Bispos de 2014, ele toca em temas tabus como o casamento gay e a contracepção. É o papa de pés no chão

Não há atitude do papa Francisco que escape à sua intenção de demonstrar humildade. Às 4 horas da tarde de 7 de outubro, o pontífice entrou em seu carro particular, um Ford Focus azul, e saiu do Vaticano, sem comitiva nem escolta ostensivas. Menos de dez minutos depois, chegou à Rua da Conciliação, número 34, sede da Secretaria do Sínodo dos Bispos.
Ali, um pequeno grupo de prelados começava a elaborar as questões sobre os desafios pastorais da Igreja acerca da família católica. Era o documento preparatório da III Assembleia-Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, reunião marcada para outubro do próximo ano.
Francisco quis bater à porta para reforçar um pedido. Para ele, as perguntas – depois encaminhadas para mais de 5.000 bispos do mundo inteiro, que consultarão os católicos como se aplicassem uma pesquisa de opinião pública – teriam de ser redigidas de forma direta, sem gongorismo, de modo a evitar respostas esquivas.
Cerca de duas semanas depois, o texto de dez páginas e 38 questões tinha sido concluído e distribuído. E a Santa Sé divulgou oficialmente a enquete (na internet e com direito a alerta no Twitter do Vaticano). Ela impressiona pela clareza e pela coragem histórica das indagações.
Trata de casamento de pessoas do mesmo sexo, de adoção por casais homossexuais, de divórcio, de matrimônios reconstruídos e muito mais daquilo tudo que, na Igreja, sempre foi tabu.
Francisco não tem medo. O pastor sabe que o único caminho é se aproximar, verdadeiramente, do rebanho. “A postura pastoral que Francisco tanto defende e pratica terá expressão privilegiada no Sínodo, depois dessa ampla consulta”, diz monsenhor Antonio Luiz Catelan Ferreira, teólogo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Para saber o que os fiéis pensam sobre alguns dos problemas propostos pelo Vaticano, especialmente os mais delicados, VEJA publicou parte da enquete em seu site na semana passada, enviou e-mail aos leitores, e dessa consulta extraiu uma pequena e relevante amostra dos humores dos católicos diante das exigências do mundo moderno.
O questionário não pressupõe nenhum gesto estrondoso de Francisco a partir de seus resultados. Servirá apenas para entender o que aproxima e o que afasta as famílias do catolicismo.
Mas é extraordinário, porque nunca se conversou com tanta sinceridade. “Como um bom jesuíta, o papa já sabe o que fazer, mas ouvirá a todos para ter respaldo em suas decisões”, diz Afonso Soares, professor de ciência da religião da PUC-SP.
O que o papa quer, no intuito de fortalecer a Igreja Católica, de se aproximar dos fiéis, está ancorado em uma de suas máximas: “O diálogo nasce de uma atitude de respeito pela outra pessoa”. É sempre bom um passeio histórico para entender um momento que soa renovador.
É comum um sínodo ter um questionário preparatório. Nenhum até hoje, porém, foi elaborado de forma tão eloquente. Compare-se com o texto do sínodo de 1980, de João Paulo II, cujo tema também foi a família.
Os bispos receberam um calhamaço de 46 páginas sobre o assunto. As perguntas eram pouco objetivas. Antes de cada questão, um texto introdutório discorria vagamente sobre o tema abordado. Dizia o capítulo sobre o divórcio: “Segundo estatísticas, em algumas regiões um terço dos matrimônios termina em divórcio. As causas desse fenômeno são muitas. Por exemplo, o aumento da longevidade humana. Por isso, é necessário uma educação dos cônjuges ainda mais apurada para que a vida conjugal seja mais prolongada”. Só então era feita a pergunta: “O que dizer sobre a situação da família nos diversos países no ponto de vista pastoral?”. Francisco, ao contrário, é direto: “Os separados e divorciados recasados constituem uma realidade pastoral relevante na Igreja?”.
Mesmo com tanto espaço para divagação, o sínodo de João Paulo II teve um papel crucial para as famílias católicas, abrindo espaço na Igreja para os casais em segunda união. Do encontro nasceu a Pastoral Familiar, com um setor dedicado a recasados.
Também com base no sínodo, Karol Wojtyla publicou, em 1981, o documento “Familiaris consortio”, no qual pedia um “empenho pastoral ainda mais generoso e prudente às famílias em circunstâncias particulares”.
Uma reação naturalmente tolerante em relação aos casamentos de mesmo sexo, por exemplo, como indica a consulta preliminar de VEJA, terá influência no sínodo de 2014? Sim, mas apenas do ponto de vista do respeito integral ao direito de escolha, não importa qual seja a opção de vida. Ou, como disse Bergoglio na hoje célebre conversa com o rabino argentino Abraham Skorka, “Deus deixou em nossas mãos até a liberdade de pecar”.
Há limites para quem quer mudar algo na Igreja – até mesmo para Francisco. Diz o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo: “O sínodo não vai alterar a palavra de Deus, da qual a Igreja é fiel depositária”. Portanto, o casamento indissolúvel, formado da união entre um homem e uma mulher, como mandam as Escrituras, permanecerá intocado.
Se a doutrina não muda, o tom pode mudar. Por isso Francisco decidiu pôr a mão na mais doída das feridas: a do catolicismo que some do cotidiano das famílias. Daí a convocação aos bispos, daí a consulta direta às paróquias.
Como um sínodo é convocado pelo papa, a quem cabe também a escolha do tema, tem-se ao final dele um conjunto de conclusões de grande força moral. Um sínodo, ressalve-se, tem poder meramente consultivo. Nenhuma decisão que surja desse tipo de encontro, portanto, é lei na Igreja.
Os sínodos foram criados durante o Concílio Vaticano II, a assembleia religiosa que marcou a modernização litúrgica e doutrinal da Igreja, realizada entre 1962 e 1965. As decisões de um concílio são deliberativas. Francisco tem tanta força que, em seu papado, por ora, as decisões consultivas têm quase poder deliberativo.
“A gente não vive em pecado. Nós somos uma família, e a Igreja pode vir a entender isso” (Foto: Ernani D'Almeida)
“A gente não vive em pecado. Nós somos uma família, e a Igreja pode vir a entender isso” (Foto: Ernani D’Almeida)
É com a voz embargada que a confeiteira carioca Juliana Luvizaro, de 33 anos (à direita na foto), lembra o dia em que um diácono recusou dar a bênção a ela e a sua companheira, a psicóloga Cristiana Serra, de 39, só porque estavam de mãos dadas. As duas mudaram para uma paróquia mais liberal e até hoje assistem à missa juntas – de mãos dadas.
Elas pensam em ter filhos, que pretendem batizar. Ao se descobrir gay, Cristiana passou três anos sem comungar. Juliana, dez. Desde 2012, participam de um grupo de apoio a homossexuais que buscam a inclusão na Igreja, o Diversidade Católica. “A gente não vive em pecado. Nós somos uma família, e a Igreja pode vir a entender isso”, defende a psicóloga.
"Ele não sabia se seria possível um novo matrimônio na Igreja tendo quatro filhos do primeiro casamento" (Foto: Antonio Milena / Milenar)
“Ele não sabia se seria possível um novo matrimônio na Igreja tendo quatro filhos do primeiro casamento” (Foto: Antonio Milena / Milenar)
Juntos há mais de vinte anos, os médicos João Luiz Duarte, de 69 anos, e Mabel Pereira, de 48, casaram-se na Igreja apenas em 2007. O motivo? “Ele não sabia se seria possível um novo matrimônio na Igreja tendo quatro filhos do primeiro casamento”, conta Mabel.
Desde que foi morar junto, o casal ficou afastado da Igreja até 2004, quando o único filho dos dois, Lucas, decidiu fazer catequese. “Fomos muito bem acolhidos”, conta o médico. Por sugestão do padre, Duarte entrou com o pedido de nulidade do primeiro casamento.
“Discordar de um dos preceitos católicos não nos afasta da Igreja” (Foto: Ernani D'Almeida)
“Discordar de um dos preceitos católicos não nos afasta da Igreja” (Foto: Ernani D’Almeida)
As tatuagens do empresário Pedro Salomão, de 33 anos, são o sinal mais visível de quão católico ele é: a imagem de Nossa Senhora no braço direito e um trecho da Oração de São Francisco nas costelas.
Mesmo levando a religião muito a sério, sua mulher, a psicóloga Marília Paiva, de 28 anos, tomou pílula anticoncepcional até o fim do ano passado. “Discordar de um dos preceitos católicos não nos afasta da Igreja”, diz Salomão.

O que dizem os católicos

VEJA submeteu parte do questionário do Vaticano que antecipa o Sínodo de 2014 a um grupo de leitores, por meio de enquete no site da revista e envio de e-mails.
A grande maioria dos 443 entrevistados que informaram ser católicos (casados, com ensino superior completo) apontou um caminho de bom-senso: a modernização do cotidiano pastoral da Igreja Católica, mas sem abandonar os preceitos religiosos em torno de questões fundamentais para a instituição, como o casamento indissolúvel, a procriação e a vida em família.
O levantamento foi conduzido pelo Departamento de Pesquisa e Inteligência de Mercado da Editora Abril.
Acompanhe a seguir seis perguntas enviadas pela Santa Sé com o texto original levemente adaptado, uma rápida explicação de VEJA e os comentários dos fiéis consultados.

Tempos modernos
1. Quais são os fatores culturais que impedem a plena aceitação do ensinamento da Igreja sobre a família?
Explicação: a questão contempla um grande problema da Igreja atual – o relativismo, doutrina para a qual os valores morais não apresentam validade universal e absoluta. Nesse contexto, a Igreja quer conhecer os apelos da sociedade moderna que questionam a moral cristã.

- “O relativismo moral e a falta de conhecimento sobre os verdadeiros ensinamentos da Igreja.”
- “A modernidade dos costumes. Ela impede que os jovens absorvam os valores da vida cristã. Cabe à família, portanto, a árdua tarefa de transmiti-los, dando murro em ponta de faca.”
- “Os dogmas da Igreja têm de se adaptar à nova realidade da sociedade sem perder sua essência.”

Casamento
2. Quando a celebração do matrimônio é pedida por batizados não praticantes, ou que se declaram não crentes, como enfrentar os desafios pastorais que disso derivam?
Explicação: aqui se trata do fiel não praticante ou do que não é membro da Igreja, mas deseja celebrar o matrimônio. De todos os católicos batizados, em média, estima-se que apenas 10% frequentem a Igreja assiduamente.

A Igreja quer um fiel praticante, envolvido com a sua fé. Um fiel, portanto, que não migra para outras religiões facilmente. Que conheça sua doutrina sobre o matrimônio e sobre a família, disposto a praticá-la.
- “O casamento é um rito social, perdeu quase todo o seu caráter de sacramento religioso.”
- “A Igreja tem de estar sempre de portas abertas para os cristãos, praticantes ou não. Os que se declaram não crentes, com certeza em algum momento da vida vão encontrar quem os faça mudar de opinião.”
- “A Igreja deve aceitar esse desafio porque é uma forma de resgatar pessoas que estavam afastadas. Tem de recuperar as ovelhas desgarradas.”

Casamento gay
3. Que atenção pastoral é possível prestar às pessoas que escolheram viver em conformidade com esse tipo de união (união de pessoas do mesmo sexo)?
4. No caso de uniões de pessoas do mesmo sexo que adotaram crianças, como é necessário comportar-se pastoralmente, em vista da transmissão da fé?
Explicação: a Igreja está atenta e preocupada com as pessoas que convivem em formações diferentes da família tradicional. A mudança de tom em relação a elas está ancorada em uma ideia: abrir espaços institucionais, dentro do catolicismo, de modo a abraçar essas minorias. O acolhimento poderia incluir a criação de uma pastoral especial para homossexuais que os acompanhasse, como já ocorre com os casais em segunda união.

- “A Igreja deve prestar a mesma atenção a todos os fiéis, pois Cristo nunca fez diferença ou discriminou qualquer pessoa.”
- “Particularmente, não aprovo esse tipo de comportamento. É uma questão melindrosa para o catolicismo. A atenção que a Igreja poderia prestar a essas pessoas seria mais psicológica que espiritual.”
- “Como o próprio Jesus era sempre dedicado às minorias da época, como cobradores de impostos e adúlteras, precisamos repensar de que forma poderíamos acolhê-los na Igreja.”
- “No caso da adoção, o problema é bem maior. Como ficará a cabeça de uma criança que vai ter dois pais ou duas mães dentro de casa? Como será a formação dela?”
- “Dar assistência à criança, mas sem abrir mão da postura da Igreja de reprovação da conduta dos pais.”
- “Garantir que os princípios cristãos e de cidadania estejam sendo passados para as crianças de pais homossexuais é vital.”

Matrimônios irregulares
5. Como as igrejas vão ao encontro da necessidade dos pais dessas crianças (provenientes de matrimônios irregulares) de oferecer uma educação cristã para os próprios filhos?
Explicação: este é um dos pontos seminais para a Igreja. Como evangelizar os filhos de quem não segue os preceitos cristãos, como os casais unidos sem a união católica ou as mães solteiras. Em maio, o papa já havia defendido o batismo de filhos de mães solteiras durante homilia em missa no Vaticano.

- “Deve-se aceitá-los na Igreja, colocá-los nas pastorais. Todo mundo tem o direito de errar e tentar novamente.”
- “Matrimônio irregular não existe, isso é algo criado. O amor é a força maior e que deve reger a relação”
- “O tratamento deve ser sem distinções. O que importa é a presença da família na Igreja, e não sua rotina e passado familiar.”

Métodos contraceptivos
6. Que métodos naturais são promovidos por parte das igrejas, para ajudar os cônjuges a pôr em prática a doutrina “Humanae vitae”?
Explicação: a doutrina “Humanae vitae” é da encíclica do papa Paulo VI publicada em 1968 e trata do tema da natalidade. O documento define a proibição do uso da contracepção artificial. Esta, no entanto, é uma questão que pouco a pouco vem mudando na Igreja Católica. O papa Bento XVI tratou da questão sob outro aspecto.

No livro Luz do Mundo, no qual conversou sobre diversos temas com o jornalista alemão Peter Seewald, o pontífice falou sobre a possibilidade de uma pessoa infectada com o vírus HIV, causador da aids, usar o preservativo. Este é um marco difícil de ser ultrapassado.
- “A Igreja deve aceitar as opções que cada casal escolher. Acho que não deve interferir nessas questões.”
- “É uma questão difícil de conciliar com o avanço tecnológico que vivemos. Soa como tentar ajudar as pessoas a abandonar a luz elétrica e utilizar lampiões e querosene.”
- “A Igreja deve fornecer o ensinamento segundo suas crenças, as pessoas devem saber de suas responsabilidades e ter liberdade de usar qualquer método contraceptivo, ainda que reprovado pela religião, se assim o decidirem.”

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