Margarida Azevedo
Mem Martins, Sintra,
Portugal
Esmagados pelas suas
próprias incongruências, os cristãos estão a viver momentos conturbados, apesar
de darem uma imagem de segurança e estabilidade. E tudo começa desde logo com o
modo de estar dos novos tempos. Já não procuram defender um ideal de pureza e
de fé como um valor mais alto. Os cristãos novos do terceiro milénio pretendem
ser cientistas, sábios, peritos nas mais diversas matérias sem o que não vale a
pena ser cristão, mais, nem se pode dizer como tal. Tudo tem que estar muito
cientificamente provado, muito claro e esclarecido dentro dos mais céleres
raciocínios matemáticos.
Os novos cristãos novos
também já não são os bem ou mal convertidos, à força ou sem ela, resultado de
uma evangelização perdida entre o positivo e o negativo, o sim e o não, a
verdade e a mentira, o interesse e a gratuidade, os heróis e os mártires. Não,
nada disso. Eles são um bando que sabe que já não convence, não converte, não
ilude. Quem tiver que ser cristão já está convertido desde o nascimento. O novo
cristão novo já nasce cristão, não precisa de ser convencido por ninguém. Mas
nem por isso tem menos trabalho.
O conhecimento científico de que é fiel
seguidor tem-no conduzido à não fé e ao misticismo, como sua natural
consequência. Qualquer destes pseudo-sábios é facilmente enganado pelo bruxo
menos perspicaz. Estes cristãos ainda não perceberam que a fé tem um espaço
próprio e que as questões existenciais não se encontram na lâmina de um bisturi
nem no genoma humano. Apelar à adivinhação, do futuro distante ou de com quem
vai casar, não é uma resposta em matéria de fé. Não se confunda crendice com a
confiança incondicional de que há qualquer coisa, minuciosamente organizada,
uma força incomensurável a que chamamos Deus; o indefinido que, por sua própria
natureza, não cabe nas nossas cabeças jamais poderá ser redutível a adivinhos.
Nesta engrenagem de
sistemas colossais, os antecessores destes cristãos deixaram-lhe uma herança
negra: uma história ensanguentada e um futuro comprometido em termos de fé.
Crer tem sido a grande violência à natureza humana, Deus o grande carrasco. É
pena. Quem disse que amar é fácil?! Os cristãos novos precisam de se converter
ao Cristo Redentor, que na Cruz superou a morte, não em termos teóricos, a
morte não é uma teoria nem um ideal, mas em termos de fé numa realidade
paralela plena de sentido. A Cruz é uma ponte para esse sentido, o qual é uma
verdade de fé.
Ora, as verdades de fé,
tais como os milagres de Jesus e os referidos em Actos dos Apóstolos,
tornara-se tu cá, tu lá com a ciência. Tudo faz parte do ensino do cientista
Jesus Cristo, o grande político, o exímio sociólogo. Isto significa que, se à
semelhança dos tempos de Jesus lhe pediam um sinal, os cristãos novos pedem uma
prova científica. Este o grande indício de que não percebem a mensagem de
Jesus, que é toda ela um convite à reformulação constante do nosso interior,
para a qual não precisamos de ser cientistas. Estamos dispensados de tal mercê.
Estes cristãos novos, porque afogados nos seus cálculos, não encontraram a
razoabilidade da destrinça entre fé e razão e o seu natural paralelismo.
Neste grupo incluímos
parte considerável dos espíritas que pretendem justificar e explicar os feitos
de Jesus. Dizer que Jesus foi o grande médium de Deus é reduzi-lo a muito pouco
pois todos possuímos capacidades para executar algo semelhante. Compreenda-se
que os seus “milagres/curas” não constituíam grande novidade ( o episódio da
ressurreição de Lázaro é um caso à parte, tal como o acalmar da tempestade).
Mas não é isso que está em causa. Os evangelhos não retratam Jesus como um
homem preocupado em fazer algo novo, mas em conduzir o auditório a reflectir
sobre a grandiosidade do Reino de Deus.
A questão, a grande
questão e a grande novidade está em remeter o acto para uma fonte da qual brota
toda a força, todo o existir, toda a felicidade no bem-fazer, e toda a fé
naquilo para que o próprio acto remete. Jesus pretende demonstrar que cada
homem e cada mulher é um agente ao serviço de Deus. Médiuns de Deus somos
todos, ainda que perdidos nas nossas distorções e incongruências, porém
mensageiros da Sua presença incondicional junto de nós quem o é? A fé tem sido
a grande tragédia humana. Não sabendo conduzi-la, torna-se fantasmática,
criadora de pesadelos, donde o maior é o medo do outro porque transformado num
monstro ameaçador.
Por isso, a fé já não
está em Deus mas na igreja que seguem; as interpretações dos textos
fanatizaram-se porque encerradas na unicidade estéril dos discursos; os
comportamentos não procuram agradar a Deus, mas estar conformes com as normas
vigentes nas organizações. Resultado, a esterilidade implantou-se. Os sepulcros
continuam caiados, as aparências vistosas, mas a fraternidade e o espírito de
entrega ao outro continuam por fazer. Por que é que o mundo é um cosmos e não
um caos? Por que é que há algo em vez de nada? Quem sou, de onde venho, por que
estou aqui? Porque dependemos da luz do Sol para viver? O que é a Natureza?
Onde estamos? Por mais científicas que sejam, e que efectivamente são, estas
questões precisam do apoio da fé. A mitologia, e míticos somo-lo todos,
felizmente, avança, através das mais belas epopeias, com respostas encantadoras.
A ciência vai lá. Se
não for, perde-se. Quanto ao outro, é um actor, somos todos actores de epopeias.
As nossas vidas não passam de tragédias onde a luta entre o individual e o
colectivo é permanente, o particular e o geral se opõem. Cada pensamento, cada
frase, cada palavra é acompanhado pelo coro que chama a uma outra razão, à
existência de uma fé fora de nós, de uma vivência fora de nós, mas que temos
que encarar como tão fundamental quanto a nossa.
O que fazer? Ir contra
as regras da minha família, da minha educação, da minha igreja e assimilar em
definitivo as da sociedade, ou permanecer fiel à educação, ao apego ao amor do
que é meu, ainda e por mais que se diga que este é passageiro? Mas também o são
aqueles a que chamamos colectivo! Que fazer? Qual a minha verdadeira
identidade? O que sou e o que posso no meio desta engrenagem? Eis a nossa
tragédia. Onde estou? A resposta passa inevitavelmente por isto: Estou do lado
dos pobres, ainda que eu seja rico/a; estou do lado dos perseguidos, ainda que
eu seja dos favorecidos; estou do lado daqueles a quem tudo falta, ainda que eu
esteja na opulência; estou do lado dos doentes, ainda que eu seja saudável;
estou do lado dos que sofrem injustiça, ainda que eu esteja do outro lado.
Porquê? Porque eu sei que hoje é assim, mas amanhã pode não ser? Porque hoje os
que padecem amanhã estarão felizes, os da miséria estarão na opulência.
Os que estão em terreno
fértil estarão entre sulcos inférteis. Porque a vida irá proceder à respectiva
cobrança, intransigentemente? Isso é muito pouco, é nada. Porque tudo o que
fizermos deve ser totalmente gratuito. Não deve ser moeda para coisa alguma,
porque o outro é um ser de dignidade, porque nada tememos, porque
incondicionalmente nos depositamos nas mãos de Quem nos criou. Porque, em
verdade, um gesto justo e correcto não tem preço. Nem de Deus. O Seu possível
agrado é a justa medida de todos os nossos pensamentos e acções justos, ainda
que comprimidos na nossa míope e frágil noção de justiça. Talvez! A gratuidade
de Deus é a natural ausência da tragédia.
Deus não é um
tragiógrafo, mas o Ser da graça. Em Deus nada tem preço. Então também as nossas
acções não devem ter qualquer materialidade. Devem ser totalmente vazias de
esperança, de bondade, de luz. Devem ser totalmente livres. A boa acção
perde-se em si mesma. Basta-se, alegra-se, felicita-se porque ela e Deus são um
só. Fundem-se e confundem-se. No Reino de Deus nada se paga porque tudo é o seu
mesmo valor. Crendo-se detentores de toda a verdade, como sempre o fizeram, os
cristãos novos vivem afogados no seu próprio estar desfasado perante o
evangelho e o mundo, numa ruptura permanente onde a ciência toma ares de
religião.
Ora, os novos cristãos novos têm nas mãos a
nobre quão difícil tarefa de converter este mundo à felicidade para que este
deixe de viver a tragédia dos opostos, as lutas entre o colectivo e o
particular. Como? Quando aquilo que cada um fizer for aquilo que desejaria que
lhe fizessem. É que o colectivo tem muito de particular e o particular tem
muito de colectivo. O particular é tudo o que existe, e tudo o que existe é o
conjunto de todos os particulares. Neste passado que carregamos e que nos
persegue tenaz, vivemos a luta quais titãs pela conquista da felicidade, a
ânsia de um dia estarmos em paz.
Esse o maior bem, mas
ao qual ainda se não converteram os novos cristãos novos porque eles são os
velhos que ainda não ultrapassaram a barreira da sua realidade trágica.
Margarida Azevedo
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