Mem Martins, Sintra,
Portugal
Para que existem as religiões? Serão elas as responsáveis privilegiadas da construção do caminho para Deus, ou haverá outras formas? O discurso político e a consciencialização do colectivo como forma de progresso social, os grupos laicos e os seus aforismos apelativos à mudança interior, a educação, não serão porventura outras formas de caminhar para Deus? Por outro lado, também importaria saber até que ponto estão as referidas discursividades emancipadas do discurso religioso ou, inversamente, até que ponto o discurso religioso está emancipado dos demais, e, estando-o ou não, em que medida tal é possível e benéfico.
Saber o que é o outro é complexo, mas para o mundo religioso é-o duplamente? Como encaram as religiões a alteridade, como perspectivam o outro na sua individualidade, irrepetibilidade, o seu ser único portador singular de uma infinidade de aspectos que são seus e só seus? A resposta a todas estas questões não é uniforme, nem poderia sê-lo, porém, isso não significa intolerância nem fanatismo. A diferença de opiniões deve ser encarada como uma mais-valia e não como um fracasso ou uma insustentabilidade das “nossas” opiniões.
Por muito diferentes que nos pareçam, os discursos religiosos têm mais aspectos em comum do que possamos pensar. Todos se julgam na posse da verdade, todos se têm como caminhos únicos de salvação, todos se encaram como privilegiados por serem quem são. Os mais tolerantes caiem sempre na afirmação de que “embora todos sejam caminhos, eu já estou num patamar acima do daquele grupo, graças a Deus.”
E isto reflecte-se em tudo. Face à pobreza, que é o que nos interessa de momento, os grupos religiosos têm nela parte da sua razão de ser. Pelo menos assim parece. E isso é de tal modo evidente que a questão surge imperiosa: “Se não houvesse pobres, que sentido teria a religião?” Se se conseguir imaginar um mundo sem pobres, que religião teríamos? Que céu, que mundo de luz, que beatitude defenderia? Isto porque sem pobres o mundo seria feliz. Ou talvez não. O contrário de pobreza não significa ausência de problema, de dor, de injustiça. A pobreza pode ter a ver com isso, mas não o é exclusivamente. Ela limita-se a ser uma das suas múltiplas apresentações.
É facto que a caridade tem sido um alvo preferencial do mundo religioso. Alimentação, cuidados médicos e de enfermagem, educação, esmolas, apoio a famílias carenciadas, idosos e crianças desprotegidas. Tudo muito louvável, realmente. Não esqueçamos que são muitos os que devem à caridade o triunfo profissional, a saúde e até a própria vida. Só que esses muito são bem poucos.
Porém, a questão não é essa. A questão reside em saber qual o móbil dessas acções, porque é aí que está a razão de tão duras críticas à caridade.
O que as moveu foi o amor ao próximo? Foi não temer que o outro pudesse manifestar mais capacidades, inteligência, criatividade, virtuosismo? Além da maioria dos necessitados não estar abrangida pela caridade religiosa, esta permaneceu quase sempre dependente da imposição de formas de fé que nada tinham a ver com as dos carenciados. Isto significa que “dou-te um pão se te converteres”, fazendo tábua rasa da fé do outro. E dizemos “quase sempre” porque somos optimistas.
Ora, as religiões têm movimentado milhões… Com os pobres? Se, em todo o mundo, as esmolas que são dadas às religiões, os donativos em dinheiro, em propriedades, em géneros que vão desde alimentos a bens de primeira necessidade, passando por joias e peças de arte; se se contabilizasse o trabalho voluntário, a venda de produtos religiosos, o comércio da fé com a venda de orações e benesses; se se tivesse uma ideia mínima da actividade bancária, de tudo o que ela movimenta, e se a mesma fosse, como dizem, para gastar com a pobreza, bem, se assim fosse seria impossível que houvesse pobres à face da terra. À custa dos pobres e à sombra da caridade acumularam tesouros, dito de outro modo, cavaram o seu próprio fosso.
Não foram capazes de ensinar a cultivar a terra nem a pescar, preferiram, na maior parte dos casos, dar o produto da terra e o peixe; temeram o livre pensamento, e com isso se empobreceram pois expuseram-se à estagnação. Hoje, queixam-se da confusão em que o mundo se encontra, não mais que o produto do que semearam. O medo gera a esterilidade e palradores de vocábulos estéreis.
Ajudaram alguns, é verdade, porém o móbil não foi erradicar definitivamente a pobreza, mas mantê-la. Não combatendo a miséria, os pobres nascem que nem cogumelos. O nosso século está a ser uma fábrica de pobres num homicídio político, social e, já se vê, religioso.
O móbil não foi a sensibilidade da alma, a assimilação da dor do outro como sua, os problemas do outro como seus. Algumas fizeram mártires, por vezes gente de comportamento estranho e inaceitável pelas comunidades, revelador de uma depreciação da vida, entregando o corpo à tortura e a vida aos intolerantes, tão intolerantes como os torturados, tão incompreendidos uns quanto os outros. Todavia, não fizeram a caridade verdadeira, e é isso que o mundo está a cobrar.
Todos os governantes têm as suas religiões, mas estas estão muito bem guardadas … nos templos. Cá fora outros galos cantam, prova de que a mensagem não passou, porque nem tão pouco existiu. É o discurso da santa pobreza para ganhar o céu, por outras palavras, o discurso camuflado dos ricos para iludir os pobres. Sensibilizar para acabar com os bairros de lata, levar a educação e a saúde a toda a gente, defender práticas ecológicas, não permitir que nenhum ser humano viva na pobreza, em condições verdadeiramente degradantes, tudo isso está por fazer. Não é importante que haja rede de saneamento básico numa barraca, o que é urgente é erradicar as barracas.
Nada existe que dê mais lucro que uma falange de pobres. Quanto maior melhor. Os pobres estão disponíveis para tudo. São reserva de sucata humana, um conjunto de peças para serem encaixadas na manipulação perigosa da complexa engrenagem da alta finança, na política sem escrúpulos, são peões ao serviço dos sem carácter.
Facilmente são aliciados, dispostos a tudo, a qualquer momento e a qualquer preço, julgando-se privilegiados por serem chamados a tarefas “bem remuneradas”. Os raros que têm trabalho, não têm horário, nem permissão para constituir família, embora muitos não o saibam. Por vezes falam nisso com um sorriso nos lábios. São os que fazem parte dos escolhidos que têm uma profissão, pela graça de Deus que se lembrou deles. São os que enriquecem as igrejas com dádivas, pois vivem em estado de graça.
A este estado social caótico, falhanço da caridade interesseira, nem já as religiões conseguem pôr cobro. Estão afogadas no seu próprio veneno. Hoje trabalha-se, amanhã logo se vê. E se porventura o houver, vão executar tarefas que nada têm a ver com a anterior. O que é preciso é que não se sintam especialistas em nada, pois assim é mais fácil jogar com o fantasma de voltar a ficar sem trabalho. Sem regalias sociais, sem subsídios, de deficitário acesso à saúde vivem a carência entre o nada e o quase nada. É o novo modelo de esclavagismo.
Consequentemente não há tempo para pensar. A mente está permanentemente ocupada com a sobrevivência, o rastejar constante perante a quem alimentam o salário da luxúria escandalosa.
Quanto aos outros, os que nunca trabalham, esses são utilizados na criminalidade da droga, das influências, do outro lado do ilícito. São o garante da manutenção de outros pobres em regime de trabalho escravo. Estes são também o alvo fácil das religiões que assim vêem forma de enriquecer à custa de dádivas, tal como os seus fiéis que vêem forma de aligeirar o fardo existencial. O egoísmo, a fé a preto e branco, no fundo o velho problema da falta de espiritualidade. E assim se manipulam os homens e as mulheres uns/umas aos/às outros/outras.
São os pobres o alvo preferencial das campanhas eleitorais, mas muito mais ainda dos discursos sem escrúpulos dos dirigentes religiosos e seus acólitos.
A Caridade é uma luta constante contra o desleixo espiritual, a acomodação cínica de que a vida é assim. Como é que sabem? Provem-no. A Caridade passa por uma vivência escatológica, a saber, a Felicidade, a Justiça, a Luz, o Bem, enfim, é para todos.
A religião tem no mundo o seu reino de ouro; a Caridade tem no mundo o seu reino de trabalho. A religião pode ser um caminho, mas a Caridade é Amor.
Margarida Azevedo
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