CHICO XAVIER FOI RUTH-CÉLINE JAPHET
Por volta de 1999, enviei para o Chico e, em 2008, também para o Divaldo Pereira Franco, o verbete de cada qual, pedindo-lhes que, se fosse o caso, me indicassem algum reparo aconselhável. Nenhum dos dois se opôs a nada.
A reencarnação do Chico como sendo a Ruth-Céline Japhet me havia sido repassada desde 4.8.1967, quando o Abelardo Idalgo Magalhães esteve com o médium em Uberaba e, lado a lado, foi anotando as vidas pregressas do Chico personificadas nos romances de Emmanuel. Tenho esse quadro comigo até hoje com a assinatura do Abelardo. A Ruth-Céline não aparece porque não foi personagem de nenhum dos romances, mas o Abelardo também falou dela, a meu pedido, e recebeu a confirmação. Eu já sabia desde aquela década, em mero exercício especulativo. Essa mesma confirmação o Divaldo Pereira Franco ouviu diretamente do Chico, que tinha acabado de chegar de Paris, onde visitara o túmulo do Codificador. Ainda mais. Muitos anos antes, foi o mesmo Chico quem fizera igual revelação para um dos seus maiores amigos e confidentes, o Arnaldo Rocha, marido da Meimei, esse espírito maravilhoso que nos ditou mensagens de elevado teor evangélico.
Destaco como importante que, de todos os que andam por aí se jactando de terem ouvido declarações do Chico, ou tirando conclusões por conta própria de que ele era Allan Kardec, nenhum deles viveu a intimidade vivida pelo Arnaldo Rocha. E, ainda este ano, quando mais uma vez esteve aqui em minha residência, o Arnaldo voltou a me afirmar que o Chico era a Ruth-Céline Japhet. Também há pouco menos de um mês, no programa da Globo News em homenagem ao centenário do Chico, ele retomou o assunto e, em resposta a pergunta que lhe foi feita, falou, até com certo enfado, que não passa de bobagem essa ideia de que Chico Xavier era Allan Kardec. Anote-se que o Arnaldo Rocha é reconhecidamente espírita sério, honesto, de inatacável probidade. Ninguém, absolutamente ninguém, no momento, tem mais autoridade do que ele para colocar um ponto final nessa ficção que o bom senso e o conhecimento da doutrina espírita deveriam de há muito ter inumado.
Já em agosto do ano passado, em entrevista concedida ao site “Espiritismobh”, o Arnaldo havia divulgado, , que, num diálogo acontecido em 1946, o Chico lhe revelara que era a reencarnação da Ruth-Céline. O Arnaldo só não incluiu essa revelação no livro Chico – Diálogos e Recordações, de autoria do Carlos Alberto Braga, porque, transcorridos tantos anos daquele diálogo, ficou em dúvida se se tratava da Céline Japhet ou da outra médium de Kardec, que ele supunha chamar-se Céline Baudin. Na verdade, essa outra se chamava Caroline Baudin. Posteriormente, o Arnaldo dirimiu a dúvida, conforme relatou em entrevista mais recente, divulgada no mesmo site. “Tive a oportunidade de ir ao Rio encontrar um amigo muito querido, Luciano dos Anjos. Questionado por que não coloquei a história da Rute Celine Japhet no livro, respondi que fiquei muito em dúvida com os nomes, pois sabia da existência das duas Celines. Ele então me respondeu que a médium auxiliar de Kardec era a Rute Celine Japhet, judia e desencarnada em 1885.”
Conversamos, sim, sobre o livro. Ele me expôs as razões e eu lhe expliquei que apenas a Japhet se chamava Céline e que, portanto, era a ela que o Chico se referira. Não existiu uma Céline Baudin. Mesmo porque, eu também já tinha essa informação desde há muito tempo e lhe pedira que aguardasse alguns detalhes que eu lhe passaria. Apenas questão de datas, pois o Arnaldo já sabia de tudo.
Ultimamente tem crescido esse movimento que vem fecundando a biografia do Chico com o radicalismo de ideias canonizantes. A personalidade de Francisco Cândido Xavier nunca teve nada, nada a ver com a do Codificador. E o próprio Chico ressaltou essa diferença, em declaração publicada no Diário da Manhã, de Goiás, de 28.8.1998, e que me dispus a propalar pela internet, em nota de 29.3.2010. Chico Xavier, como vimos aqui, no início desta matéria, tem sido sempre mulher. E, diga-se, nesta última vida de médium, foi uma grande mulher, com sentimentos que mostraram ao mundo o valor de saber ser mulher num corpo masculino. Isso é muito difícil, mas o Chico, nesse particular, foi um vitorioso, vencendo tendências naturais que lhe poderiam ter arrastado ao fracasso da missão.
Nesse entrecho, tem acontecido até anedota de humor despudorado. Médica espírita de São Paulo publicou artigo na Folha Espírita, alegando que o Chico não se casou da mesma forma que também Allan Kardec não viveu maritalmente com Amélie Boudet. Teria existido entre o casal apenas um amor platônico, daí não terem tido filhos (?!). A que delirante paroxismo chegamos. Vale tudo para colocar Kardec como santo católico, na mesma vestalidade das fêmeas mais pulcras. Ora, convenhamos: para estar a par de uma intimidade tão grande entre os dois só se admitindo – concluem os piadistas – que a doutora é a Amélie Boudet reencarnada. E já não duvido de que ela venha a público fazer essa fantástica confissão de identidade. A essa altura, espero por qualquer esquizofrenia.
Voltarei ainda à figura de Francisco Cândido Xavier. Por agora, vamos conhecer melhor Ruth-Céline Japhet, sobre quem, aliás, Allan Kardec nos deixou muito poucas informações, o que, de resto, também o fez em relação aos demais médiuns que participaram do preparo de O Livro dos Espíritos. Esclareceu ele que assim agiu para evitar exatamente o que hoje vêm fazendo com Francisco Cândido Xavier, que até procissão pelas ruas de Pedro Leopoldo já ganhou. Tem mais. Já há gente fazendo-lhe romaria ao túmulo para recolher lágrimas que “surgem” dos olhos do busto de bronze. Na continuidade do show carismático, acaba de ser produzido um hino a Chico Xavier, cuja letra, diga-se, é desoladoramente trash. Mas, nada estará perdido. Talvez sirva para acompanhamento nas novenas, que com certeza surgirão. É por isso que creio já ser hora tardia de resgatar da vulgaridade essa atual febre de negativa propaganda do espiritismo.
Ruth-Céline Japhet na realidade se chamava Ruth-Céline Bequet. O sobriquet Japhet ela o adotou para identificar-se como sonâmbula profissional. Reencarnou em 1837, na província de Paris, cujo local exato não consegui localizar. No ano de 1841, ainda morava por lá, com os pais, quando ficou gravemente doente, impedida de caminhar. Sua infância lembra os infortúnios de Chico Xavier, tal a luta que empreendeu pela saúde combalida. Era médium desde pequena, mas só por volta dos 12 anos começou a distinguir a realidade entre este mundo e o espiritual. Na infância, confundia os dois. Acamada por mais de dois anos, foi um magnetizador chamado Ricard quem constatou que ela era médium (sonâmbula, na designação da época), colocando-a em transe pela primeira vez. Mas não fizeram mais do que três sessões. Impaciente com a ineficácia dos remédios que tomava para recuperar os movimentos das pernas, seu irmão resolveu, por conta própria, magnetizá-la, assim tentando durante seis semanas seguidas. O resultado foi fantástico. Ela conseguiu levantar-se e voltou a caminhar com o auxílio de muletas. Nessas condições assim ficou por quase um ano (onze meses), depois do que, afinal, pôde dispensar as muletas, claudicando embora.
Em 1845, quando ainda tinha 2 anos, a família, empolgada pelos
resultados obtidos com os passes magnéticos, resolveu seguir para Paris, à procura do magnetizador Ricard, aquele que houvera feito com Ruth-Céline as primeiras experiências. Então ele a levou ao colega Millet, em cuja residência acabou conhecendo outro magnetizador famoso, o sr. Roustan (não confundir com o grande missionário Roustaing), que estudava o magnetismo de cura desde 1840. Ele morava na rue Tiquetone nº 14 e negociava com joias, na rue des Martyrs nº 19 (outras referências indicam o nº 46).
Foi a partir desse contato e diante de todos os benefícios amealhados, que ela assumiu a condição de sonâmbula profissional (médium profissional), sob o controle de Roustan. E passou a adotar o nome de Ruth-Céline Japhet (srta. Japhet).
Explique-se que, naquela época, e até mesmo hoje, em países como os Estados Unidos, a Inglaterra e a própria França, só existiam médiuns remunerados e era comum a adoção de “nomes de guerra” Ainda estava por surgir a doutrina espírita. Transformado em febre na Europa, o espiritismo se constituía apenas em bases fenomênicas, importado não há muito da América. Allan Kardec é quem vai dar um novo rumo ao seu desenvolvimento prático, acrescentando-lhe o principal, isto é, conteúdo sério e sentido moral.
Daí que, como não poderia deixar de acontecer – e veremos isso adiante –, Allan Kardec não pôde exonerar-se de algumas divergências com suas médiuns, em especial a principal do grupo, srta. Ruth-Céline Japhet.
Ela permaneceu atendendo ao seu público durante quase três anos seguidos, dando consultas médicas que lhe eram transmitidas por Samuel Hahnemann, fundador da homeopatia, Anton Mesmer, fundador do mesmerismo, e por seu próprio avô. Também lhe apareciam, ditando mensagens de orientação, Teresa d’Ávila e outros benfeitores espirituais.
Sigamos a cronologia. Roustan levou-a, em 1849, para uma sessão no palácio do conde d’Ourche, em Vincennes. Estavam presentes: o conde e a condessa d’Ourche, o barão Louis de Guldenstubbé (possuo sua obra em minha biblioteca) e sua irmã Sônia, o casal De Lagia, o filósofo holandês barão Tiedeman-Marthèse, o sr. e a sra. Roustan, e o sr. Japhet, pai de Ruth-Céline. Funcionou como médium Mme. Abnour, que havia acabado de retornar da América e estava mais familiarizada com os fenômenos de magnetismo. Ruth-Céline, com 12 anos, era a mais jovem dos presentes. Ao término dos trabalhos, Mme. Abnour aproveitou aquele encontro para convidar Guldenstubbé, Roustan e a Ruth-Céline para formar um grupo particular que, com mais a integração de Abbé Chatel e das três demoiselles Bauvais, passaram a se reunir na casa onde então morava o sr. Japhet e sua filha, na rue des Martyrs nº 46 . Ao todo eram nove pessoas.
A partir da primavera de 1851, as sessões aconteciam duas vezes por semana, sob a direção do sr. Japhet, que era médium intuitivo, e com Roustan prosseguindo no auxílio médico-espiritual à srta Japhet, cuja saúde, em geral, continuava sempre bastante precária. Ela mesma funcionou ali mediunicamente desde 1851 até 1857, ou seja, dos 14 aos 20 anos.
No ano de 1855, participavam das reuniões: Tierry, Taillandier, Tillman, Ramón De la Sagia, Victorien Sardou e seu filho, o casal Roustan e, naturalmente, o sr. Japhet, a essa altura já viúvo, e a filha Ruth-Céline. Outra importante presença era Adèle Maginot, a médium principal de Alphonse Cahagnet, o maior magnetizador da época. Com ele, praticamente todos os magnetizadores de então iniciaram o aprendizado, inclusive Roustan. Pois bem, Roustan considerava Ruth-Céline médium superior a Adèle Maginot.
Essas sessões copiavam o modelo norte-americano trazido por Mme. Abnour: Ruth-Céline ficava no centro do salão rodeada pelos demais participantes, com as cadeiras em forma de ferradura. Os espíritos se valiam da tiptologia e, às vezes, da psicofonia. Assim aconteceu e se estendeu até meados de 1864, bem depois de já haver sido lançado O Livro dos Espíritos. As comunicações recebidas eram consideradas por todos como excelentes, de alto valor instrutivo.
Em 8 de maio de 1855, Allan Kardec assistiu pela primeira vez a uma sessão de espiritismo (mesas girantes), na residência da sra. Plainemaison, na rue Grange-Batêlier nº 18. Ali conheceu o sr. Japhet e sua filha Ruth-Céline. Ele era guarda-livros (espécie de contador) em casas comerciais.
Victorien Sardou tinha o seu próprio grupo de magnetizadores e há cinco anos vinha frequentando as sessões em casa do sr. Roustan, na rue Tiquetone nº 14. Ele é quem teria passado para Allan Kardec os cinquenta cadernos com as anotações dos espíritos, ponto de partida de O Livro dos Espíritos. Segundo outras fontes, Carlotti, velho amigo do professor Rivail e que também integrava o grupo, é quem teria repassado os cadernos. Frequentavam essas sessões: Victorien Sardou e seu pai, o professor e lexicógrafo Antoine Leandre Sardou; o futuro acadêmico Saint-Renné Taillandier; o livreiro e editor Pierre-Paul Didier; Tiedeman-Marthèse; e outros.
Naquele exato ano, no dia 1º de agosto de 1855, Allan Kardec é levado a participar das sessões em casa do sr. Baudin, cujas filhas Caroline e Julie atuavam como médiuns, na rue Rochechouart nº 7. A primeira reunião com a presença de Kardec realizou-se numa quarta-feira. Baudin era fazendeiro, cultivava açúcar, na ilha da Reunião, território francês no oceano Índico. Nos primeiros momentos, o Codificador quase abandona tudo, dada a frivolidade das sessões. Mas ele mesmo dá novo rumo às reuniões e ali tem início o esboço de O Livro dos Espíritos, seguido da confecção de grande parte da obra. Baudin mudou-se depois para a rue Lamartine nº 32. Ainda em 1855, Allan Kardec é levado por seu amigo Victorien Sardou (outras fontes dizem que o convite partiu do sr. Leclerc) à casa do sr. Japhet, cuja filha contava 18 anos.
Em 1856, Allan Kardec começou a frequentar também as sessões em casa do sr. Roustan, na rue Tiquetone nº 14, onde Ruth-Céline psicografava com a cesta de bico (corbeille-toupie). Durante certo tempo, participou das reuniões nas casas do sr. Roustan e do sr. Japhet. Ruth-Céline Japhet era sempre a médium principal, havendo Allan Kardec assegurado que essas reuniões “eram sérias e se realizavam com ordem”. Tanto mais que ali se manifestou, pela primeira vez, O Espírito da Verdade.
Amélie Boudet (a Gabi, mulher de Allan Kardec) acompanhava-o sempre. Ali, teve início o seu trabalho missionário, quando passou de observador atilado a condutor dos objetivos das reuniões. O professor Rivail logo percebeu que as respostas dos espíritos eram de conteúdo transcendente e deveriam ser conduzidas no melhor aproveitamento. Javary era um dos mentores (na época chamados de guia) das sessões de caráter público. Esse nome encobria um espírito que, na encarnação anterior, havia sido índio americano. A partir de então, a história é bastante conhecida. Assumindo de fato o controle das sessões, Rivail recolhe delas notáveis revelações, que irão comparecer nas páginas de O Livro dos Espíritos. Propõe abrir os trabalhos às 20 horas, com uma prece e introduz novo método de perguntas. Na reunião de 1º de janeiro de 1856, estavam presentes: Zéfiro, Agostinho, João Evangelista, Vicente de Paulo, Sócrates, Fénélon, Swedenborg, Hahnemann. Reuniam-se às quartas-feiras e sábados. Desde abril de 1856, as médiuns passaram a usar a pena de pato em vez da corbelha tupia.
Nos primeiros momentos, a maior parte das respostas vieram pela mediunidade das irmãs Caroline e Julie Baudin, aliás, amigas íntimas de Ruth-Céline. Em 1856, a família Baudin estava morando na rue Lamartine nº 32. Os pontos mais importantes, no entanto, foram psicografados pela Ruth-Céline. Foi também por intermédio dela que o professor Rivail recebeu, no dia 30 de abril de 1856, a primeira notícia sobre a sua missão. E também que soube da sua encarnação passada, ao tempo de Júlio César, nas Gálias, quando havia sido um sacerdote druida chamado Allan. Depois, pelo médium Roze, que irá colaborar na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, os espíritos revelaram que o complemento do nome era Kardec. Esta versão de que o nome foi revelado de maneira fracionada, em duas etapas, é da srta. Japhet, em conversa com Aksakof. Posteriormente é que Rivail teria feito a junção dos dois, na onomatópose que encobriria seu verdadeiro nome e que lhe teria custado algumas críticas, bastante injustas por sinal, durante o famoso Processo dos Espíritas. Allan Kardec narra que foi Z. (Zéfiro), seu espírito protetor, quem revelou o nome e que os dois viveram juntos nas Gálias. Acrescentou, noutra oportunidade, que também as irmãs Baudin eram gaulesas, encarnadas naquela mesma época de Kardec. Por sua vez, quase todos os do grupo da srta. Japhet eram antigos semitas, convertidos ao cristianismo. Já Ermance Dufaux – aproveito para revelar – recebeu de outro guia, noutro local, notícia de que vivera igualmente naquele grupo gaulês de Kardec. Apenas, concluiu-se, Ruth-Céline era egressa doutra região.
As irmãs Baudin foram, portanto, as que mais concorreram para a primeira fase dos trabalhos de composição de O Livro dos Espíritos. Contudo, os espíritos recomendaram que fosse feita uma revisão ampla, de ponta a ponta, trabalho então realizado com a contribuição da srta. Japhet em sessões particulares, na residência de Roustan, na rue Tiquetone nº 14. Essa foi, pois, a tarefa principal, que se estendeu de junho a dezembro de 1856, tendo Alllan Kardec declarado que a médium “se prestou com a maior boa vontade e o mais completo desinteresse a todas as exigências dos espíritos” (Revue Spiriite, 1858, p. 36). Quanto ao desinteresse, parece que não foi bem assim...
Em princípios de 1857, Allan Kardec encaminhou à editora os originais e, em 18 de abril de 1857, como todos sabem, é lançado, no Palais Royal, O Livro dos Espíritos, de repercussão imediata. Kardec arcou com todos os custos, pois o barão Tiedeman-Marthèse, amigo pessoal, “não quis prestar o seu concurso pecuniário”, conforme apelo do Codificador. E aqui começam os contratempos, muito bem escamoteados do público em geral. Ruth-Céline Japhet estava com 20 anos.
Após essa data, Allan Kardec deixou o grupo do sr. Japhet e passou a fazer reuniões na sua própria residência, ali bem ao lado, na rue des Martyrs nº 8, onde morou de 1856 a 1860, ano este em que se mudou para a passage Sainte-Anne nº 59, sede também da Revue Spirite. Ruth-Céline, Caroline e Julie estavam noivas e logo se casaram. Allan Kardec explica, sucintamente, sem entrar em detalhes, que, pelos fins de 1857, as duas Baudin se casaram, as reuniões cessaram e a família se dispersou. Ruth-Céline, não mencionada, também se casou e, estranhamente, nunca mais se falou delas. Há registros de que, por essa ocasião, pretendeu-se realmente fazer descer sobre a médium Japhet uma cortina de silêncio, ao tempo em que se distinguiam, nos círculos de estudiosos, dois pensamentos distintos quanto à questão da reencarnação (espiritualistas versus magnetistas). Concomitantemente, Mme. Japhet, afastada, guardava algumas desolações enquanto espalhavam que ela havia desencarnado, por conta de descompassos com membros do grupo da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Nesse grupo deveria de fato haver pessoas complicadas, pois o próprio Allan Kardec irá escrever, mais tarde, que foi traído dentro da entidade. Sem embargo, apesar de dada como morta, a verdade é que Mme. Japhet prosseguiu dando consultas até pelo menos meados de 1873, época em que morava com o marido em Paris, na rue des Enfants Rouges, G.
Como geralmente acontece (até no seio do apostolado de Jesus aconteceu), o lançamento de O Livro dos Espíritos provocou impacto estrondoso em todos os círculos religiosos e culturais, mas trazendo também no seu bojo algumas dissensões internas entre os integrantes do grupo de Roustan, onde havia permanecido a srta. Japhet, e o grupo que acompanhou Kardec para as sessões na sua residência, onde viria a ser preparada a segunda edição definitiva de O Livro dos Espíritos.
Allan Kardec nunca escondeu que Ruth-Céline Japhet e as irmãs Caroline e Julie Baudin foram suas médiuns principais. O trabalho da srta. Japhet, após passar à modalidade direta de psicografia, era completamente mecânico, pelo que ela tinha inclusive dificuldade em seguir o enredo do que escrevia. Sem embargo de nunca haver sido impedida por seu guia espiritual, ela não se atrevia a escrever a sós. O trabalho final da revisão de O Livro dos Espíritos, inclusive a Introdução e a Conclusão, foi feito quase que integralmente através da mediunidade dela, na casa dela, às vezes com a colaboração do seu pai em alguns pontos considerados mais difíceis. Já a revisão da segunda edição, de 1860, coube em grande parte à médium Ermance Dufaux, realizada na residência do próprio Codificador.
Ainda na conversa que teve, em 1873, com o conhecido pesquisador russo Alexandre Aksakof, a sra. Japhet, já casada, se lamentou de que não havia recebido nenhum exemplar de O Livro dos Espíritos e que Allan Kardec, ao se afastar do seu grupo para montar o próprio, com o médium Roze, levara um maço de manuscritos com os quais, em parte, foi composto O Livro dos Médiuns, em 1861. Tentara reavê-los, mas soube apenas que Allan Kardec havia sugerido que ela reclamasse na Justiça. Essa foi a sua declaração, ao confessar-se magoada com os acontecimentos da época que, no fundo, ocultavam algo pelo menos estranho.
Contudo, não devemos precipitar ilações que podem estar divorciadas das intenções. Em primeiro lugar, seria preciso saber de quem eram os manuscritos. Da médium, ou de Kardec? Mensagens e respostas vinham pela mediunidade dela, mas as questões costumavam ser propostas por Kardec. Provavelmente, não desejando que se criasse uma situação de desconforto para os dois, Kardec preferiu acenar com as leis pretendendo talvez que tudo se resolvesse no âmbito imparcial da Justiça, caminho muito natural para os que almejam contornar pendências pessoais. No fundo, é até justo supor que de fato existia no mal estar uma circunstância importante para ambos. Ruth-Céline também lamentou não ter seu nome e nem o dos demais médiuns nos livros publicados. Seria uma compensação para quem trabalhara de graça. Ora, tendo produzido grande parte do texto e a integral revisão da obra, a médium vivia, no mais, uma época de ignorância em que a mediunidade valia dinheiro. Portanto, ela estaria se considerando prejudicada.
Allan Kardec, por seu turno, que ganhava dinheiro com suas obras pedagógicas (justa remuneração de seu esforço profissional), prontamente despertou para uma visão ética muito mais profunda da nova religião que acabara de codificar. Não poderia concordar, mesmo que quisesse e pudesse – como poderia, é claro, se houvesse falhado na missão – com uma mercantilização que desmoralizaria, na origem, o ensinamento dos próprios espíritos no sentido de que nenhum produto espírita, notadamente mediúnico, deveria ser remunerado. Acresce que o público, embora estivesse acostumado a isso, dificilmente acreditaria numa nova mensagem cristã-espírita sabendo que havia sido obtida à custa de dinheiro. Porém, esse era conceito muito novo para ser entendido de pronto pelos médiuns profissionais da época... Allan Kardec, em sua visão missionária, assimilou muito bem e mais rápido ainda a importância desse critério e não poderia ceder; mas a srta. Japhet e todos os sonâmbulos contemporâneos não tinham a menor capacidade de alcançar todos os valores dessa estranha moral. Há, pois, que se entender o Codificador; e perdoar a mais qualificada médium do período.
Kardec e Japhet eram missionários, mas faltava a ela a visão luminosa que aflorou nele em relação a seus respectivos papeis e à substância dos preceitos da Terceira Revelação. Reencarnacionistas, médium e Codificador não tinham mais nenhuma dúvida a respeito dessa questão fundamental e, pois, estavam do mesmo lado; mas a questão da omissão do seu nome na obra e da renúncia forçada a quaisquer pagamentos profissionais, convenhamos que era demais para o entendimento dela. Nesse ponto, Allan Kardec exibia anos-luz de progresso espiritual e rapidamente assimilou o juízo ético. De qualquer forma, como ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei, o espírito Ruth-Céline Bequet não se perdoaria, na espiritualidade, desse comportamento e desse inconformismo, impondo-se a si mesma uma nova missão em que, nas mesmas condições de grande médium, pudesse vencer todas as tentações para testemunhar seu desprendimento total, sua humildade extrema e seu amor incondicional em favor da doutrina de Jesus
Assim, aquela crise do século XIX se transformou num cravo para o espírito que, no século seguinte, reencarnaria no Brasil comprometido em ampliar seu esforço mediúnico no trabalho desinteressado de desdobramento da revelação. Ruth-Céline Japhet conseguira evoluir o bastante para cair em si e consertar seu posicionamento anterior. Essa parte da história é recente e todos conhecem. A largueza foi sempre um marco de honra na mediunidade do missionário de Pedro Leopoldo e Uberaba. Viveu a vida toda como prisioneiro de invencível respeito à humildade. Francisco Cândido Xavier refugou sistematicamente qualquer tentativa, direta ou indireta, que pela vida afora foi surgindo em termos de remuneração material. Nunca aceitou qualquer tipo de compensação, e viveu do seu trabalho de escriturário, depois de sua mísera pensão oficial e, mais na velhice, da ajuda que amigos particulares lhe ofereciam, mas sempre em troca de nada. Conheci alguns deles.
Era preciso reparar aquele tropeço do passado. Conseguiu. Chico Xavier foi um vencedor e sabia que teria, agora, de se sacrificar até aos limites do impossível para exemplificar o que poderia ter aprendido, nesse particular, no convívio pessoal com Allan Kardec. Teve sempre repulsa – esse é o termo exato – a qualquer tipo de compensação por seu trabalho. E ele arrostou períodos de grandes dificuldades e de grandes tentações. Mas manteve altaneira a dignidade e a sua credibilidade mediúnica. Nunca teve adrenalina para acompanhar os acontecimentos que lhe envolviam o nome associando-o ao direito de ser recompensado na terra.
Inobstante, é sempre necessário repisar que Ruth-Céline foi uma mulher de muitas virtudes e muito afeto. Simpaticamente romântica, era uma figura que se destacava do biotipo francês. Tinha personalidade, talento próprio e uma alma generosa, reconhecida por todos que privavam da sua amizade e da sua intimidade. Não era sem motivo que Amélie Gabrielle Boudet a tratava de filha. Magrinha, pálida, esculpida de grandes olhos negros e de espessa cabeleira negra, com marcantes traços judaicos dos povos orientais. Muitos a julgavam de origem árabe. Sua vida misturou dor e amor, num caleidoscópio de belas emoções.
Ruth-Céline Japhet teve uma encarnação como hebreia, no Egito; depois, retornou como judia, em Canaã; viveu nova encarnação na Palestina; e uma outra vida como moura, em Portugal. O ramo de sua família descendia remotamente de mouros portugueses, convertidos há séculos ao cristianismo. Essas encarnações, levantadas pelo erudito pesquisador Canuto Abreu, tiveram, por escrito, o endosso de Emmanuel, através do próprio médium.
Bem, essa é a história de Ruth-Céline Bequet, conhecida por srta. Japhet, e que veio reencarnar no Brasil como Francisco Cândido Xavier, conhecido por Chico Xavier.
E, antes de encerrar e para esfriar de vez o fricote dos mais fanáticos, chamo atenção para três fatos capitais:
1. Há uma comunicação de Allan Kardec, ditada em 30.3.1924, e publicada na Revue Spirite de julho de 1924
2. Francisco Cândido Xavier tinha Zilda Gama na conta de médium excepcional, sobre quem escreveu para o presidente da FEB, em 1946, expressando seu contentamento e reconforto pela notícia de mais um livro por ela psicografado. Pois é dela mensagem de Allan Kardec, recebida em 27.12.1912, estampada, com mais outras, no seu precioso livro Diário dos Invisíveis (possuo a 2ª edição de 1943).
3. Na década de 60, Francisco Cândido Xavier admitiu, para um grupo reservado de amigos, que Allan Kardec já estava reencarnado. Nascido no Brasil, foi estudar na Suíça e vive lá até hoje, com dupla nacionalidade (A.L.R.). A hipótese – já completamente descartada – tinha ao menos um mínimo de coerência. Trata-se de professor humanista de notável erudição, principalmente filosófica, e é admirado pelos círculos mais cultos do magistério suíço. Só que ele mesmo não quer nem ouvir falar do assunto.
Relacionei, no início deste texto, estas e outras reencarnações que pude registrar desse espírito maravilhoso. Como pode ser observado, trata-se de espírito que tem voltado sucessivamente na forma feminina, ocorrendo a exceção apenas agora, no Brasil de 1910, tendo em vista a missão com a qual se comprometera. Se mais uma vez tivesse vindo como mulher, principalmente naquele início de século, jamais teria qualquer chance de se fazer ouvido e respeitado. O preconceito era muito marcante e impeditivo de qualquer nivelamento dos sexos.
E cabe a indagação: vindo como veio num corpo masculino, quem cometeria o despautério de achar que aquela personalidade não era uma mulher declarada, em todos os sentidos? Seu psiquismo jamais traiu a aparência, a feminilidade. Sua psicologia behaviorista tinha o carimbo consagrado dos automatismos, dos reflexos, dos gestos, dos meneios, dos maneirismos de delicada, colorida e formosa mulher.
LUCIANO DOS ANJOS
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