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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

CÉU - PROPRIEDADE PARTICULAR


Luiz Carlos Formiga

Tenho dois amigos. Eles foram “leprosos”, no Hospital de Dermatologia Sanitária.
Posteriormente, curados da Hanseníase apresentaram sequelas graves. Mesmo assim, praticavam os ensinamentos do Evangelho Segundo o Espiritismo. São exemplos de superação.
Conheci Amazonas Hércules, quando fui assistir uma de suas palestras. Cheguei em cima da hora e fiquei na última fileira. Uma muleta revelava sua deficiência física. Falou-nos da vida e com poesia lembrou Jesus. (1)
Depois de mais de 50 anos, não me lembro bem de suas palavras, mas, ficou a emoção como reforço da vacinação. Ensinava e emocionava como Renato Teixeira: “ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque  já chorei demais. É preciso amor, pra poder pulsar. É preciso paz pra poder seguir.”
O Conde Dimitri também fez amizade com um leproso, que não teve a felicidade do tratamento com antibióticos e quimioterápicos. Quem conta é Tolstoi.
“Kozlovsky é doente há uns vinte anos! Vive sozinho com um anão. A mulher dele fugiu. Mas as autoridades encontraram-na e fizeram-na voltar para tratar dele. Matou-se. Farmacêutico abastado, adoeceu e a miséria colheu-o em suas redes. Por motivos políticos vira-se preso e sofrera o degredo com trabalhos forçados, na Sibéria, e lá tivera início o seu terrível mal, que progredira assustadoramente.”
O Conde Dimitri resolveu visitá-lo e oferecer ajuda, para aliviar o sofrimento.
“A casa de Kozlovsky encontrava-se em adiantado estado de ruína, tal qual o próprio dono. Quando o trenó parou à frente do portão, gritaram de longe aos três viajantes: arredai-vos, não entreis! Trazeis esmolas? Deixai-as no portão, que o criado retirará depois. Aí reside um leproso!
— Leproso?... Disseram leproso?
— Pois disseram leproso, Conde Dimitri. Não devemos entrar... — apressou-se Nikolai a intervir, aconselhando o amo.
— Mas, eu nunca vi um leproso... Como será?

Não creio que a lepra me atinja só por eu visitar um leproso. Farei o seguinte: não lhe estenderei a mão e nem me sentarei.” (2)
Desde a juventude, a Lepra estimulava a minha curiosidade. Talvez porque encontrasse doentes no bonde. Eu morava perto de uma “colônia”.
Muito tempo depois uma aluna manifestou desejo de produzir uma Monografia sobre o assunto. Ficamos entusiasmados e convidamos um PhD em Comunicação para nos ajudar. Juntos, escrevemos “Hanseníase, a Lepra e a Comunicação Dirigida”.(*)
Considerando a importância da informação sobre a Lepra para estudantes do curso de graduação em Enfermagem, o estudo descreveu a situação da Hanseníase no Brasil.
A educação sanitária possui relevante papel no controle da doença infecciosa. Apresentando a enfermidade de forma realista ela contribui para o seu tratamento correto e, ainda, ajuda a desfazer estigmas e preconceitos.  Por essa razão, fizemos a proposta do uso da Comunicação Integrada. (3)
Como foi feita a comunicação ao leproso, quando o Conde resolveu visitá-lo?
Qual a reação do doente diante de ato inusitado e corajoso, daquele homem rico e poderoso?
“Dimitri foi recebido por um ser disforme, pequenino, mal proporcionado,  Era um anão. Contudo, não era leproso e parecia irradiar saúde e alegria de viver.
.— Bons-dias, que desejais? Podeis deixar vossas esmolas. Eu as retirarei.
— Deixaremos esmolas, mas desejamos também visitar pessoalmente o doente.
O anão sobressaltou-se e fitou Dimitri com curiosidade :
— Quanto a isso não será possível, senhor! Perdoai-me! E nem o Sr. Kozlovsky o consentiria.”

Após os argumentos e a insistência de Dimitri, entraram.
“Visitas para vós paizinho. Eu não queria permitir-lhes a entrada, mas insistiram. Talvez haja a intervenção dos amigos espirituais nesse acontecimento. E permiti-lhes entrar...
— Sim, Karl. Fomos avisados, ontem, pelo nosso Anjo-Guia, de que receberíamos visita significativa. Julguei tratar-se de visita espiritual. Quem, humano, ousaria entrar neste tugúrio? Mas ei-la! aí está! Deus seja louvado.

De quem se trata?
O anão empertigou-se, e apresentou as visitas:  O Conde Dimitri Stepanovitch Dolgorukov, Senhor destes domínios, e seus pajens...
O doente pareceu surpreender-se, pois ergueu vivamente a cabeça despida de cabelos. Os glóbulos dos seus olhos cegos, que uma membrana esbranquiçada e esponjosa recobria, agitaram-se dentro das órbitas, cujos rebordos das pálpebras já se viam corroídos pela Lepra.
O doente sentado em primitiva cadeira de rodas, já rota e remendada, coberto com andrajos de lã; à beira de uma estufa que tivera, outrora, o seu valor artístico.
Dimitri encontrava não propriamente um homem, mas farrapos humanos em decomposição através da Lepra, um monstro de pernas paralíticas, cego, leproso em adiantado grau, e cujas mãos, já sem dedos, porque o mal terrível corroerá as falanges, eram incapazes de algo tentar para os serviços do dono. O rosto, dir-se-ia máscara diabólica, pela fealdade, pois dele desaparecera já parte do nariz, dos lábios e das orelhas, além dos supercílios, e de cuja pele arroxeada e escalavrada, como se queimaduras a alterassem, destilavam matérias asquerosas, exalando desagradável almíscar, tal um suor pestífero.”
“O aviso, do Anjo-Guia, da visita significativa” permite-me uma digressão para lembrar o querido Marcondinho, Espírito Espírita, que conheci em Jacarepaguá, na antiga “colônia de leprosos”.
Depois de algum tempo na espiritualidade Marcondes me procura para demonstrar a imortalidade e me dar a grande alegria de sabê-lo feliz, fora do velho corpo físico.
Vou contar rapidamente, pois a mim me interessa divulgar o excelente trabalho O Paralítico de Kiev, da médium Yvonne Pereira, no livro Ressurreição e Vida, pelo Espírito Leão Tolstoi.
Estive com o Dr. Reynaldo Leite, médium e Juiz de Direito, num programa de TV, no Rio de Janeiro. Ali ele viu o Espirito, que desencarnara no "leprosário". No Curupaiti, Ele aprendeu a amar a Religião dos Espíritos frequentando o Centro Espírita Filhos de Deus. Com braços e pernas atrofiados, cego e numa cadeira de rodas, chegou a trabalhar, pasmem, na reunião de desobsessão.
O médium o descreveu, inicialmente, como um ser cego e muito deformado.
Eu, o entrevistador e o Dr. Reynaldo estávamos sentados à mesa, antes do início do programa, quando relatou a sua vidência.
Disse-me: “Formiga, um Espírito que se diz seu amigo, me pediu para dar um recado. Disse que você vai identificá-lo facilmente.”
 “Ele surgiu ali na entrada, mas veio rolando pelo chão, apresentando-se com pernas e braços muito atrofiados. Postou-se a seu lado e disse que estaria junto, o tempo todo”.
“Em seguida, exibindo radical transformação, transformou-se num belo espírito de luz.”
“Pediu-me para lhe descrever como se encontra no mundo espiritual.”
“Formiga, você o conhece?”
 Sim. Aprendi a admirá-lo. Hoje está feliz, graças ao estudo e prática das lições do Evangelho de Jesus. (4)
Como estaria o leproso Kozlovsky? No Céu ou no inferno?
“Como te sentes hoje? Perguntou o Conde solidário.
O doente deixou entrever monstruosa crispação das faces: era um sorriso. Respondeu com lágrimas na voz, em tom rouquenho, devido à ausência das narinas.
Em seguida comentou a realidade das expiações através de indagações pertinentes.
Porventura não é inferno viver assim uma alma, que conheceu as glórias do poder, os caprichos do amor, o triunfo das paixões, os regalos da fortuna, a fascinação das turbas prostradas aos seus pés, os gozos vis da soberania cruel; não é inferno sentir-se retida numa cadeira de rodas, prisioneira de si mesma, votada ao mais contundente abandono, sentindo, minuto a minuto, a Lepra corroer-Ihe as carnes, devorar-lhe os olhos para torná-los cegos, destruir-lhe as mãos, que outrora foram homicidas, para aprofundar as suas mesmas amarguras; soltar-lhe os dentes, para detalhar o martírio e a fealdade; deformar-lhe o rosto, para torná-lo monstruoso como o próprio caráter?
Já imaginou, Excelência, porventura, o infernal suplício daquele que não possui mãos para os próprios serviços? Pois, eu não as possuo mais!
Sabe, Excelência, como poderei ingerir os alimentos se, por qualquer motivo, Karl não está presente para mos levar à boca, também já aviltada, porque sem o paladar? Laço-o como o faz o animal: Karl deixa-os aqui, sobre esta mesa, ao pé de mim. Se advém o apetite incontrolável, tateio  com os tocos destas mãos; deponho o rosto sobre o prato e os vou retirando, com a boca.
— Não será, porventura, sentir-se retido nas entranhas dos infernos o coração que, como o meu, amou loucamente uma mulher, da qual fez sua esposa, por quem daria o sangue das próprias veias e a vida, mas que, ao adoecer, viu-a fugir de si, apavorada da sua enfermidade e da sua presença, e a qual, obrigada a voltar ao lar pelas autoridades judiciárias, para tratar do esposo desgraçado, que sou eu, preferiu matar-se para se livrar dele, a viver e ter de suportá-lo”?
Voltemos, novamente, a colônia do Curupaiti.
Para não ir desacompanhado ao Hospital de Dermatologia Sanitária, convidei um colega, que iria pela primeira vez. A visita era na enfermaria. Pouco depois, chegou um grupo de espíritas. Ao perguntarem quem faria a oração antes do passe, Marcondes se ofereceu.
Sentados na cama acompanhamos sua prece, que emocionou a todos. Agradeceu a Deus pelo dom da vida, pela oportunidade da reencarnação e as Entidades Venerandas, que nos legaram a Codificação Espírita.
Ainda sentado na cadeira de rodas, o doente Koslovsky continuou a dirigir-se ao Conde.
“Não estarei ainda hoje nos infernos, quando, irremediavelmente cego posso ver, durante horas e dias (oh! a única coisa, Excelência, que é dado aos meus olhos enxergar!), a alma conflagrada da mulher amada, enlouquecida nas ânsias advindas do suicídio, a vagar, por entre gritos e blasfêmias, por esta mesma casa onde habitou e foi feliz ao meu lado,  a me suplicar perdão, a me rogar socorro para suas desgraças, porventura maiores do que as minhas, porque não encontra nem asilo, nem refúgio, nem consolo, nem alívio em parte alguma, como suicida que foi, ao passo que eu possuo a coragem da fé que deposito no amor do Criador e no destino da minha alma?”
Lembrei do Anjo-Guia e de Eunice Weaver, o “Anjo dos Leprosos”.
Eunice recebeu o título de cidadã benemérita do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e Bahia e o de cidadã honorária de dezoito cidades brasileiras.
Quem seria o Anjo de Kozlovsky?
O leitor vai me excomungar, mas não vou contar o que Tolstoi revelou pela psicografia de Yvonne.
O Conde Dimitri estava estupefato e seus pensamentos se atropelavam.
Kozlovsky estaria também louco, atacado nas faculdades mentais?
Como poderá viver assim sem enlouquecer?
“— Conheces, pois, os Evangelhos, ou a história do Cristianismo do primeiro século? Perguntou Dimitri.
— Conheço, Excelência! O Evangelho há sido o grande esteio onde me amparo para enfrentar as desventuras; o consolo supremo das horas que aqui suporto, entre o amargor da miséria, o opróbrio da doença e a solidão dos afetos. A tal ponto protegeu-me o Evangelho contra as desgraças que me atacaram que, tal como me vê, assim monstruoso e sofredor, desfruto momentos de tão intensa felicidade espiritual.
 — Enquanto possuí olhos e a dádiva da vista não me abandonara, li e reli os Evangelhos, procurando assimilar a sua essência. Sobre eles meditei até horas mortas da noite... e consegui encontrar o meio de suprir minha alma de conhecimentos bastante preciosos, para me ampararem quando os olhos se apagassem, vencidos pela moléstia. Li Swedenborg e os clássicos psiquistas ingleses... Li Allan Kardec, esse francês genial e eminente, recém-falecido, que soube reunir, coadjuvado por Espíritos, em cinco preciosos volumes, a Doutrina da Imortalidade, que faltava à consciência humana...  Li Aksakof.
Assim tenho aprendido que, se sou o monstro que aqui está, é que tenho vivido outras existências corporais neste mundo! Vivi outras vidas no pretérito, durante as quais errei, cometi crimes, contra a sociedade e as leis de Deus! E agora expio o passado, para expungir da consciência a mácula desonrosa das infrações de outrora. Não obstante, repito, sinto-me feliz! A Doutrina da imortalidade arrebata para os ideais mais elevados e nos ensina a enfrentar acontecimentos da vida, por um prisma diverso daquele que os outros homens adotam.”
O leproso me fez lembrar o livro de Lin Yutang:
"Só aquele que encara despreocupadamente as coisas com que se preocupam os homens pode preocupar-se com as coisas que os homens encaram despreocupadamente." (5)
Como fazer chegar aos distraídos a elevada missão da Ciência Espírita? (6)
O Conde não esperava pergunta embaraçosa e o leproso não se fez de rogado:
“Excelência! Já ouviu falar da reencarnação? Pois é sublime lei da Criação, que opera a reeducação das almas culpadas!
Vivi resplendente de poderio sobre o trono da Rússia, em passada etapa reencarnatória! Fui Yvan, o Terrível, aquele Imperador que semeou desgraças e sangue, desesperações e morte. Matei, com as próprias mãos, várias de minhas esposas e até meu próprio filho.”
Dimitri bradou, banhado em lágrimas: Oh! Que fazes, quando semelhante tortura, que os infernos esqueceram de inventar, te enlouquece a mente?
“— Que faço ?... Que faço ?... Volto-me para Deus! Oro! Suplico a clemência dos Céus para ela, cem vezes mais desgraçada do que eu, porque eu, eu, Excelência, possuo o tesouro de uma certeza inabalável na misericórdia do Altíssimo, certeza que me consola e revigora para levar, até final, a humilhação da minha vergonha de alma culpada que se arrepende.. . ao passo que ela, ela, nem mesmo acredita em si própria, na existência da própria alma em atribulações, pois supõe-se viva, a debater-se em insondáveis pesadelos agravados pela minha presença!. ..

Yvan, o Terrível é sofredor, reduzido ao mais trágico e mais sórdido nível social existente sobre a Terra!  Degradado pelos próprios crimes pretéritos, cujas repercussões expiatórias o perseguem há três longos séculos!
Muito arrependido está esperançado na reabilitação, através da Dor e do Trabalho.
Está resignado ao compreender que, sendo alma imortal, destinada a ininterrupta quão gloriosa ascensão para o Melhor, será necessário que sofra, que chore, que se submeta e humilhe, para aprender que a lei promulgada para as diretrizes das almas filhas de Deus é — Amor a Deus e ao próximo —, caminho de luz que, um dia, o alçará à dignidade da união com Ele.”
Céu. Propriedade particular, conquistada com trabalho sem propina.
Para a conquista, as sete virtudes do Cavaleiro Templário ajudam extraordinariamente.
Com a fé, que é a primeira, ele pode saber e entender as coisas invisíveis. (7)
Yvan, o Terrível, foi Kozlovsky, o leproso que leu Allan Kardec.
No Livro Obras Póstumas, a popularização do Espiritismo é recomendada.
Evangelho Segundo o Espiritismo diz que a árvore do Cristianismo deve dar os frutos de vida, de esperança e da fé. (8)
O que podemos fazer para ajudar a acordar consciências, para que compreendam a elevada missão do francês genial?

(*)  apresentado ao 17° Encontro Nacional dos Estudantes de Enfermagem, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará. Julho, 1994. Classificado em 5º lugar entre os quarenta e seis trabalhos apresentados.

Referências




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