A máscara é um dos pilares mais incisivos da cultura. É uma amostra de algo a que chamamos identidade, cujo mecanismo assenta em dois pilares, a saber, o gesto e a palavra. Estes necesssitam de uma componente bem estruturada, o corpo, o qual é responsável pelos elementos mecãnicos sem os quais ela não seria possível, como por exemplo, a voz, os braços, …
Para além deste aspecto, que é biológio, há outros, plásticos, com aspectos e funções bem definidos. Estes, mais que alterar o aspecto do rosto e do corpo, constroem um vasto e complexo processo de transformação, resultante da estranha necessidade de mostrar outra figura, figura essa que conduz a um desapossar-se de si, impondo-se com uma linguagem própria e portadora de uma mensagem. Ela abrange todos os aspectos da vida: políticos, sociológicos, as crenças e a fé… a partir de duas coordenadas que não definimos, a saber, o espaço e o tempo. Assim, a máscara pode aludir a um tempo e a um espaço imaginários, por exemplo, “Era uma vez um arlequim num palácio de cristal …”; a um tempo e a um espaço reais, por exemplo, “Quando era criança, a minha avó contava-me muitas histórias do tempo em que era jovem.”
Essas histórias, sagradas ou profanas, desenvolvem a curiosidade de experimentar a vivência dos seus heróis numa simbiose em que o herói da história torna-se parte do ouvinte e este dele. Este processo de fusão advém, não apenass de um mecanismo psicológico que permite identificar-se com o herói, mas, e muito mais, por não ser possível viver sem imitar; Aristóteles afirmou, na Poética que o homem é o mais imitador de todos os animais. Mas também somos os mimos dos nossos heróis, e estes são uma criação fantasiosa e imaginária da necesssidade de criarmos gente, diferente de nós no tempo e no espaço. Desta forma, e por muito estranho que nos pareça, esta verdadeira alucinação é um estado criativo que torna a vida suportável, uma vez que a realidade é causadora de desconforto. Dito de outro modo, a realidade plástica torna sofrível o desconforto de uma vivência infeliz; precisamos de arlequins, de palácios de cristal e de chocolate, palhaços, pierrots.
De igual modo, e com a mesma intensidade, precisamos de imitar os profetas, idealizá-los, construí-los ou adaptá-los às nossas necessidades. Desde sempre os fiéis se vestiram a rigor para os seus ritos. Trajar um fato de penas, de peles, enfeitar-se com ossos ou dentes de animais tem feito parte do imaginário religioso, assim como vestir-se como o santo da devoção para lhe agradar e pedir benesses. Daí o folclore e o religioso serem manifestações de uma mesma realidade. O milagroso, por exemplo, está vinculado a grandes e intensas manifestações da máscara. O que é a cura milagrosa de um leproso? Uma transformação radical, a passagem de um aspecto, que se não quer, para outro mais saudável e vigoroso, permitindo a integração social. A partir da cura surgem os ritos de adoração com a sua poesia, a dança, o traje.
Os cristãos, particularmente, estão vinculados ao milagroso nos feitos de Jesus junto dos doentes, as curas, quer nas alterações súbitas e radicais da natureza, como no acalmar da tempestade, a pesca milagrosa ou a multiplicação dos pães e dos peixes; além destes, temos as transformações muito exuberantes do aspecto de Jesus, tal como é descrito, por exemplo, no episódio da montanha (Mt 17:1-9; Mc 9: 2-8; 9:13; Lc 9:28-36): Seis dias após uma pregação (Mt; Mc), ou mais ou menos oito (Lc), Jesus sobe a uma montanha onde foi transfigurado (Mt; Mc), ou foi orar (Lc). Os textos não dizem se Jesus tinha como objectivo transfigurar-se, mas sabemos que o episódio foi de grande recolhimento e intensidade mística, de tal forma que os apóstolos, Pedro, e os irmãos Tiago e João, não percebendo o que estava a acontecer, ficaram cheios de medo; Pedro propôs que montassem três tendas, uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias, mas mantendo-se assustado; como os identificaram, os textos não dizem, parece que estavam tão reais como Jesus.
Pergunta-se: Porquê esta deslocação a uma alta montanha? Porquê a transfiguração? Em Lucas, o episódio está enquadrado numa oração, não nos restantes. O que não deixa dúvidas é que a transfiguração aconteceu para identificar Jesus como Filho muito amado de Deus; parece que o ensino, a pregação às multidões, não seriam suficientemente arrebatadores para uma tal revelação; o acontecimento é reforçado pelo surgir de uma voz identificadora que sai de uma nuvem, cuja sombra incide sobre eles, envolvendo a própria revelação em mistério.
Seguidamente, em Mateus e Marcos, Moisés e Elias limitam-se a desaparecer logo após a revelação; em Lucas é acrescentado que os apóstolos não contaram a ninguém, “…,naqueles dias,…”. Fica, residualmente, a grande questão da mudança de aspecto, por parte de Jesus, que, ao que parece, foi o único a passar por alterações significativas do seu aspecto. Esta máscara mística, que não anula a figura terrena, uma vez que os apóstolos nem por um momento perderam a noção de que Jesus era efectivamente Jesus, ficaram aquém de perceber o fenómeno da identidade de Jesus, que foi o que realmente aconteceu. Para nós, a transfiguração associada a uma tão grande revelação pretende mostrar que não estamos fatalmente ligados a um aspecto, que pode surgir um momento desvinculador com outro discurso. Na transfiguração de Jesus, a grande verdade sobre a sua verdadeira natureza, saída de uma voz, impõe uma verdade arrebatadora. Quantas vezes o popular alude a momentos similares, em que a máscara cai por terra e novas realidades se lhe sobrepõem? A nossa dificuldade está em descodificar esses momenos, cuja consciência dos mesmos vem, geralmente, a posteriori. Curiosamente, o evangelho de João, o único que alarga a genealogia de Jesus para lá do mundo carnal, o Verbo, não contém este episódio. É caso para perguntar: Porquê? No entanto, ele é de tal modo importante que Tomás de Aquino classifica-o, ao que parece, como o maior dos milagres.
Vejamos os episódios da ressurreição: Maria Madalena viu Jesus ao pé do túmulo e não o reconheceu (Jo 20:14-16), assim como dois, que iam de Jerusalém para um povoado, Emaús, também não o reconheceram (Lc 24:13-17); aparece aos apóstolos e é confundido com um espírito, e viu-se obrigado a pedir que lhe tocassem para verificarem que era ele mesmo em carne e osso, mostrando-lhes ainda as mãos e os pés (Lc 36: 41-42). Em Marcos 16: 9, aparece primeiro a Maria Madalena, de quem tinha expulsado sete demónios, e depois, “noutra forma”, (porquê?), a mais duas pessoas (Mc 16: 12-13) que não creram; por seu lado, os apóstolos não acreditaram nas afirmações dos que diziam que o tinham visto; por fim, apareceu aos Onze e, quando estavam à mesa, censurou-lhes a incredulidade. Em Mateus 28:16-17, não há um irreconhecimento total, mas a incerteza por parte de alguns. Em João 20: 19-20“…mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria por verem que era o Senhor.”, Jesus, porém, mais à frente, acrescenta:”Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram.”.
A singularidade destes episódios reside no facto de que é o próprio profeta que se transforma; é ele quem impõe o processo vinculativo da máscara a etapas decisivas de forma a, por meio das diferentes apresentações, testar a fé. A máscara impõe-se ainda, e consequentemente, como factor identitário de uma duplicidade existencial: Jesus é o mesmo (nos gestos e nas palavras, no modo do partir do pão), o que é muito pouco, porém outro, aquele que transporta consigo a esperança e a certeza de uma sobrevivência para além da morte. Quanto ao não reconhecimento, ele é basicamente incredulidade.
Perante o facto de não reconhecerem o mestre, com quem conviveram tão de perto, com quem comeram à mesma mesa, assistiram a curas, pregações, enfim, várias questões se impõem: O que mudou, efectivamente, no aspecto de Jesus? Porque não lhe bastou dizer quem era? O que é que significa, perante a nova apresentação, não ver, mas crer? Parecce que houve uma desmemorização, que coincide com o surgir de outra figura, isto é, uma alteridade. Em Mateus, há uma incerteza, por parte de alguns, mas, quanto aos outros, identificaram ou não Jesus? Sabemos que não há um irreconhecimento total, o que significa que há um reconhecimento incerto.
Assim, a que fé aludiam os apóstolos? À de Jesus pregador, baseada nas palavras e nos gestos. Ainda não tinham assumido a nova forma de fé, a da ressurreição.
Toda a fé carece de um suporte identitário, o que está sempre dependente de uma noção de mundo, circunscrito ao gesto e à palavra. A resssurreição é o testemunho da mudança radical entre esse mundo, que nós desenhamos, e um outro que não definimos, mas agora por ela revelado e que significa vida eterna. É facto que desconhecemos a natureza da nossa mesma humanidade, vinculada a processos transformativos radicais, mas podemos avançar, ainda que timidamente, que algo se revela e que podemos defini-lo como o humano que sobrevive. É isso. Somos sobreviventes às castástrofes próprias da nossa existência. E fazemo-lo como? Através da mitica realidade plástica, mimando esses episódios. Certeza, só a de sabermos que temos que mudar, imperetrivelmente, o que já não é pouco
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