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sábado, 12 de dezembro de 2015

“BRASIL, CORAÇÃO DO MUNDO, PÁTRIA DO EVANGELHO”: UMA ANÁLISE CRÍTICA (PARTE II – Caps.7 a 14)



 LEONARDO MARMO MOREIRA
Continuação da PARTE I....

Capítulo 7 – Os Negros do Brasil

                Vejamos o comentário sobre a cruz e a mudança de nome de nossa nação:

p.59-60 “A esse tempo, a terra do Evangelho não é mais conhecida pelo nome suave de Santa Cruz. À força das expressões comuns, dos negociantes que vinham buscar as fartas provisões de pau-brasil, seu nome se prende agora ao privilégio das suas madeiras. Os missionários da colônia protestaram contra a inovação adotada, mas as falanges do Infinito sancionaram a novidade imposta pelo espírito geral, considerando as terríveis crueldades cometidas na Baía de Guanabara, em nome do mais caricioso dos símbolos. A sanção de Ismael à escolha da nova expressão objetivava resguardar a pátria do Cruzeiro dos perigos da Inquisição, que na Europa fomentava os mais hediondos movimentos em nome do Senhor”.

            O que a mudança de nome teria a ver com “resguardar a pátria do Cruzeiro dos perigos da Inquisição”? Só por causa do nome “Santa Cruz”? Além disso, todo o parágrafo está inundado de expressões católicas.
            A página 64 inicia com o começo de um parágrafo em que o expositor pretende analisar o papel dos negros nas tarefas espirituais do Brasil. Alguns comentários, mais uma vez, causam estranhamento. Vejamos:
“Foi por isso que os negros do Brasil se incorporaram à raça nova, constituindo um dos baluartes da nacionalidade, em todos os tempos. Com as suas abnegações santificantes e os seus prantos abençoados, fizeram brotar as alvoradas do trabalho, depois das noites primitivas. Na Pátria do Evangelho têm eles sido estadistas, médicos, artistas, poetas e escritores, representando as personalidades mais eminentes. Em nenhuma outra parte do planeta alcançaram, ainda, a elevada e justa posição que lhes compete junto das outras raças do orbe, como acontece no Brasil, onde vivem nos ambientes da mais pura fraternidade...”.

                Em primeiro lugar, que “raça nova” é essa que foi formada? Em princípio, nenhuma raça foi formada.
“...Em nenhuma outra parte do planeta alcançaram, ainda, a elevada e justa posição que lhes compete junto das outras raças do orbe...”.

                O Explicador afirma que em nenhum outro país os negros são tão considerados quanto no Brasil. Trata-se de afirmativa estranha e questionável, pois França, México, Estados Unidos, entre outros países, também apresentam boa presença de negros com representativo desempenho socioeconômico.  De fato, antes dessa frase, o texto afirma “Na Pátria do Evangelho têm eles sido estadistas, médicos, artistas, poetas e escritores, representando as personalidades mais eminentes”, só que em vários países isso também ocorre. Mas o pior ainda é a última frase: “...onde vivem nos ambientes da mais pura fraternidade...”. Ora, se ainda hoje a comunidade negra brasileira reclama de significativo preconceito, afirmar, em livro publicado no ano de 1938, que os negros vivem “...nos ambientes da mais pura fraternidade...” é “dourar a pílula” excessivamente. O que o autor diria se lesse o livro hoje (2015) sabendo que os EUA tem um presidente negro?

                Outra afirmativa questionável vem no mesmo parágrafo, logo a seguir:

p.64 “...É que o Senhor lhes assinalou o papel na formação da terra do Evangelho e foi por esse motivo que eles deram, desde o princípio de sua localização no país, os mais extraordinários exemplos de sacrifícios à raça branca...”.
                Será que o Senhor não assinalou papéis de destaque para os negros em outros países? E, temos que frisar, que os negros foram “escravizados”, ou seja, constrangidos aos sacrifícios. Portanto, trata-se de uma frase com sentido ambíguo.
                Logo a seguir, outra colocação também muito questionável:

p.64 “...e foi por essa razão que a terra brasileira soube reconhecer-lhes as abnegações santificadas...”.

                Não entendemos essa passagem. Não conseguimos ver como a sociedade brasileira soube reconhecer as “abnegações” dos negros. Não houve nenhum fato especial na abolição da escravatura no Brasil que sugerisse algum tipo de reconhecimento.


Capítulo 8 – A Invasão Holandesa
               
p.69. “...Todas as demais nações, como o próprio Portugal, se encontram presas da cobiça, da inveja e da ambição. Os vícios de todas as identificam perfeitamente umas com as outras, e no povo lusitano temos de considerar a austera honradez aliada a grandes qualidades de valor e de sentimento, que o habilitam, conforme a vontade do Senhor, a povoar os vastos latifúndios que constituirão mais tarde o pouso abençoado da lição de Jesus...”.

                O texto é prolixo e contraditório, pois se “todas as demais nações, como o próprio Portugal...” apresentam “...cobiça, inveja e ambição”, que são “vícios de todas”, identificando “perfeitamente umas com as outras” como podemos entender a subsequente frase “e no povo lusitano temos de considerar a austera honradez aliada a grandes qualidades de valor e de sentimento”. Perceba que o conectivo “e” não indica ideia contrária. Se o povo lusitano não se diferenciava dos demais em uma série de vícios morais, como poderia ter tais distinções éticas?! O texto é confuso. Além disso, a frase final também é vaga, pois quer dizer que essas pressupostas qualidades morais “...o habilitam, conforme a vontade do Senhor, a povoar os vastos latifúndios que constituirão mais tarde o pouso abençoado da lição de Jesus...”. Trata-se de algo muito subjetivo, vago. Parece um elogio vazio ao povo português. Poderiam falar a mesma coisa do povo espanhol justificando a colonização na América Hispânica, que por sinal é muito maior; ou falar do povo inglês e da América inglesa, que por sinal é muito mais desenvolvida socioeconomicamente; ou mesmo do povo francês e da América francesa, que deu origem a boa parte do Canadá, sem falar em parte dos EUA.

                Além disso, aqui percebemos mais uma alusão a decisões de Jesus que não resistem à menor análise. É inadmissível que Jesus confiasse no povo lusitano para instalar a fraternidade entre o povo africano que viria para o Brasil, sem prever que “administraria” no Brasil a escravidão de africanos por quase 4 séculos. É aceitável que a Espiritualidade tenha ajudado e inspirado os povos que colonizaram a América, mas isso não significa que ela tenha apoiado os abusos. Seria de se esperar que o livro falasse isso de modo mais claro e objetivo.

Capítulo 9 – A restauração de Portugal

                Nesse capítulo, há um diálogo também questionável entre Jesus e Helil. Vejamos alguns comentários de Jesus:

p.74 “...No Brasil, onde lançamos os fundamentos da pátria do Evangelho, introduziram o tráfico de homens livres, forçando as falanges de Ismael a despender todos os esforços possíveis para que as ordens divinas não se subvertessem pelas iniquidades humanas. Em Lisboa, permitiram a entrada do terrível instituto da Inquisição, que comete no mundo todos os crimes em meu nome, que deveria ser, para todas as criaturas, um sinônimo de brandura e de amor”.

                Novamente Jesus afirma sobre o Brasil: “...onde lançamos os fundamentos da pátria do Evangelho...”. É um comentário estranho, sobretudo quando o texto o coloca na “boca de Jesus”, pois todas as pátrias deveriam ser do “Evangelho”, sobretudo para Jesus. O curioso é que não são as “falanges de Jesus” que salvam o trabalho espiritual, mas as “falanges de Ismael”. E isso, supostamente, na boca de Jesus: “...forçando as falanges de Ismael a despender todos os esforços possíveis para que as ordens divinas não se subvertessem pelas iniquidades humanas...”. Quer dizer, o trabalho de Jesus foi salvo graças às falanges de Ismael. Jesus ainda afirma sobre Portugal: “...Em Lisboa, permitiram a entrada do terrível instituto da Inquisição, que comete no mundo todos os crimes em meu nome, que deveria ser, para todas as criaturas, um sinônimo de brandura e de amor”. O livro “Brasil, coração...” enunciou em capítulo anterior, que o povo português seria “o povo mais humilde do mundo”. Será que essa humildade coaduna com esse impacto inquisitorial? E onde estavam os missionários de Jesus, que segundo o livro “Brasil, coração...” seriam os jesuítas, que não lutaram para evitar que isso acontecesse? É claro que a “Companhia de Jesus”, conhecida como o “Exército de Jesus”, não era tão isenta de problemas assim, apesar do livro defender isso com veemência.
Entre nós foram relevantes os serviços prestados pelos primeiros jesuítas (Nóbrega e Anchieta, dentre outros). Porém, é o próprio Espírito Emmanuel que consigna, em “A Caminho da Luz” [Emmanuel, 1972], no capítulo XX “Renascença do mundo” (no tópico “Ação do Jesuitismo”), o lado infeliz da “Companhia de Jesus”, de nefasta memória: predomínio, cupidez e ambição, que não poupava nem mesmo os padres sinceros.

Capítulo 10 – As Bandeiras
               
p.83 “...As jóias da mulher e das filhas são empregadas no seu arrojado empreendimento, arruinando-se a família inteira. Fernão Dias, porém, segue um roteiro luminoso. Por onde passa com as suas caravanas, florescem povoações asseadas e alegres. Seus pontos de contato com a terra paulista são os arraiais prósperos e fartos, que vai edificando nos caminhos desertos. As esmeraldas do seu sonho nunca foram encontradas, e as pedras verdes que entregou ao genro no instante da agonia, com única expressão da sua fortuna, representavam, decerto, o símbolo suave das esperanças do seu labor e das suas lágrimas na terra do Evangelho. Próximo do local onde mandara enforcar o filho, nas margens do Rio das Velhas, o seu espírito de lutador se desprendeu igualmente do corpo exausto, e quando, no íntimo do coração, implorava a misericórdia do Altíssimo para o delito, com que exorbitava de suas funções na Terra, a voz de Ismael falou-lhe do Infinito:
                __ Irmão, as quedas, com as suas experiências sombrias, constituirão os degraus do teu caminho para as mais gloriosas ascensões espirituais...!”.

                A exaltação de Fernão Dias causa bastante estranheza, pois, ao contrário de um Bezerra de Menezes, por exemplo, ele não estava levando a família à ruína por amor a todos os irmãos e por uma prática incansável e imparável das caridades espiritual e material, mas, sim, para dar vazão ao sonho de encontrar pedras preciosas. Mas o mais questionável é que o seu “...roteiro luminoso”, incluiu mandar “enforcar o filho”, e, em um eufemismo absurdo, assassinar um filho é considerado pelo texto “...o delito, com que exorbitava de suas funções na Terra”. Então, o seu “roteiro luminoso” foi manchado por uma “leve” exorbitância de suas funções na Terra? Um assassino do próprio filho que arruinou toda a família por excessiva ambição? O texto causa a impressão de que uma pessoa ambiciosa, que cometera um crime grave, poderia estar agindo sob inspiração superior. Se o texto quisesse apenas ressaltar os benefícios que as caravanas de Fernão Dias trouxeram para algumas regiões, que dissesse isso de modo mais direto, mais claro, mais de acordo com o caráter racional do Espiritismo.

 Vejamos o comentário de Ismael, que tenta “justificar” o assassinato do filho e todos os erros de Fernão Dias:

__ Irmão, as quedas, com as suas experiências sombrias, constituirão os degraus do teu caminho para as mais gloriosas ascensões espirituais...!”.

                E para encerrar o capítulo 10, Fernão Dias começa a desfrutar das “merecidas verdadeiras esmeraldas do seu grande sonho”. Vejamos:

p.84 “Fernão Dias Paes abre os olhos materiais pela última vez. Uma lágrima pesada e branca lhe corre pelas faces emagrecidas; mas, sobre o seu coração, paira a benção cariciosa da terra dourada das minas, e, sentindo-se na posse das verdadeiras esmeraldas do seu grande sonho, o notável batalhador regressa de novo à vida do Infinito”.

Ou seja, o texto reserva uma vitória espiritual para um homem que, por ambição, arruinou a família e, ainda por cima, assassinou o filho. Segundo Garcia (2014), os sertanistas, entre eles Fernão Dias, praticavam atos violentos, escravizava e matava índios (http://www2.camara.sp.gov.br/apartes/09/revista_apartes_AGO14_26a33.pfd).
Não há a menor possibilidade de outra leitura para esse texto, a não ser a de que é de uma pobreza intelectual imperdoável, pois a aceitarmos tantos crimes cometidos, como que o agente recebe afagos de um Espírito iluminado e ainda por cima “regressa de novo à vida do infinito”?

Capítulo 11- Os Movimentos Nativistas

                Novamente, o texto faz apologia ao “jesuitismo”. Vejamos:

p.86 “A esse tempo, no extremo norte convulciona-se o Maranhão, sob os ímpetos revolucionários de Manoel Beckman, contra a Companhia do Comércio, que monopolizara os negócios da importação e exportação da capitania, e contra os jesuítas, cujo espírito de fraternidade se interpunha entre colonizadores e os índios...”

Vejamos na p.87, outro texto estranho:

p.87 “...As providências da contra-revolução no extremo norte são adotadas sem dificuldade. Gomes Freire procede com magnanimidade com os revoltosos, sem, contudo, poder agir com a mesma liberalidade para com Manoel Beckman, que foi preso e sentenciado à morte. Sua fortuna teve-a ele confiscada, mas o grande oficial que comandara expedição, dentro das tradições da generosidade portuguesa, arrematou todos os bens do infeliz, em hasta pública, e os doou à viúva e aos órfãos do revolucionário”.

                É interessante perceber a noção de “tradições da generosidade portuguesa” e “magnanimidade”, que o texto exalta, as quais, aparentemente, incluem “matar o semelhante”. O texto, porém, não explica o motivo da afirmativa: “...sem, contudo, poder agir com a mesma liberalidade para com Manoel Beckman”. Por que ele não pôde? E o parágrafo termina exaltando a “generosidade” do “grande oficial” ao afirmar que ele “...arrematou todos os bens do infeliz, em hasta pública, e os doou à viúva e aos órfãos do revolucionário”. Deixou a viúva e os órfãos ficarem os bens que já eram deles mesmos.  Manoel Beckman era um senhor de engenho do Maranhão que, em 1684, junto com seu irmão, e com o apoio de comerciantes locais, saqueou a Companhia do Comércio do Maranhão. Esta companhia, instituída pela coroa portuguesa, causava insatisfação na comunidade, pois cobrava preços abusivos por seus produtos e pagava pouco pelos produtos fornecidos pelos proprietários rurais. Beckman e outros revoltosos foram condenados à forca. Segundo a fonte consultada, “As ações da coroa portuguesa, que claramente favoreciam Portugal e prejudicava os interesses dos brasileiros, foram, muitas vezes, motivos de reações violentas dos colonos. Geralmente eram reprimidas com violência, pois a coroa não abria mão da ordem e obediência em sua principal colônia” (http://www.historiadobrasil.net/resumos/revolta_de_beckman.htm, acesso em 28/06/2015).

Capítulo 12 – No Tempo dos vice-reis

                Na página 92, novamente, comenta-se, desnecessariamente, atitudes supostamente “superiores” dos padres, no caso a oração, exaltando suas qualidades
               
p.92 “...e os padres podem rezar beatificamente, nos seus breviários, entre as paredes coloniais do Convento de Santo Antonio”.

                Também é importante salientar que, sempre que possível, o máximo de valorização e detalhamento sobre atividades triviais da vida católica são enfatizadas no livro.
                Analisemos a página 94:

P.94. “Ismael com as suas hostes do mundo invisível, consegue harmonizar lentamente os interesses espirituais de quantos se haviam estabelecido na pátria do Cruzeiro. Sob sua inspiração, a Igreja torna-se a protetora da mentalidade infantil daquela época. Os templos da colônia abrem as portas para todos os infelizes e para todos os tristes. Os reinóis organizam festanças periódicas, missas e procissões da fé…”
                Por que não se referir ao mediunismo oculto dos escravos no interior das senzalas? Segundo os historiadores, os escravos (bantos, sudaneses, nagôs e iorubanos) que mais tempo conviveram com seus senhores, à força assistiam e participavam dos cultos católicos.
Mas, tal obediência era por obrigação, não professavam aquela crença por devoção, já que na intimidade da senzala, às ocultas, é que extravasavam sua fé... E ali, o mediunismo, entre eles, era um antigo e singelo exercício espiritual aprendido e praticado desde os tempos da terra-mãe, agora lhes aliviando a cruel realidade — a escravidão. Por acomodação parcial, a pouco e pouco os rituais, sacramentos, paramentos, imagens, altares, etc., do catolicismo, foram agregados ao seu culto, porém sob roupagem própria, adequada, isto é, africana.
Essa, a origem do chamado Brasil-candomblé.
                Analisemos o parágrafo seguinte:

p.94. “Sob as vistas condescendentes da Igreja, os mensageiros do Espaço se fazem sentir mais fortemente junto dos senhores, amenizando a situação amargurada dos míseros cativos...”.

Mais à frente:

p.95 “A Igreja, no Brasil, abre o seu culto a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário tornando-se um refúgio de doce consolação para os pobre africanos. As ordens religiosas possuíam seus pretos, que eram bem tratados e jamais poderiam ser vendidos.”

                A Igreja tinha um papel de forte influência no estado brasileiro nos quase quatro séculos de escravidão que o Brasil tristemente manteve. Afirmar que a “Igreja” era um um refúgio de doce consolação para os pobre africanos”, é algo muitíssimo questionável. Além disso, o texto afirma “As ordens religiosas possuíam seus pretos, que eram bem tratados e jamais poderiam ser vendidos”. Ora, se jamais podiam ser vendidos, a Igreja estava fomentando a escravidão. E, além disso, “possuíam seus pretos”, trata-se de construção, que denota um certo desrespeito aos negros. Para concluir, a expressão “jamais poderiam ser vendidos”, demonstra que a Igreja os mantinha como escravos mesmo! Porque não os mantinha como libertos, fornecendo-lhes carta de alforria e contratando seus serviços de forma remunerada. Os padres e bispos não faziam isso e, o que é pior, são tratados pelo texto por meio de uma promoção exagerada e sistemática, que nem sempre é encontrada em muitos textos de autores católicos. Voltamos a perguntar: – Por que não se referir ao mediunismo oculto dos escravos no interior das senzalas?

                Segundo o historiador Vasconcelos (2005), a igreja foi conivente com a escravidão negra no brasil, agindo como suporte ideológico da escravidão. Estava interessada apenas com a catequização em massa, não se interessando pela sorte dos negros.

p.95 “...A filantropia dos brasileiros cedo começou o movimento abolicionista, e a prova da profunda assistência espiritual que acompanhava essas ações da Pátria do Evangelho é que nunca teve o Brasil um código negro, à maneira da França e da Inglaterra”.

                O texto está sempre oscilante entre a exaltação da Igreja Católica, e sua suposta altíssima proteção espiritual e seus supostos elevados valores espirituais e o discurso ufanista a respeito do Brasil. A suposta “prova da profunda assistência espiritual” chega a ser um comentário até “irônico”, considerando o que os negros sofreram por quase quatro séculos seguidos de escravidão, com repercussões em termos de preconceito até hoje. Se o Brasil tinha tamanha proteção e se a nossa “escravidão foi tão abençoada assim”, porque o Brasil tem a VERGONHA HISTÓRICA de ser um dos últimos países a abolirem a escravidão?
                São reflexões elaboradas por autores espíritas, questionando um livro publicado como obra espírita, e dos mais vendidos, famosos e considerados “admiráveis” do século XX. Ou muitos confrades compraram e não leram, o que é natural, considerando o grande volume de livros que todos os Espíritas militantes tem para ler. Ou leram e não entenderam muita coisa. Ou leram e viram os erros e, nesse caso, ignoram e/ou minimizam os erros. Acreditamos que não emitir opinião crítica negativa a respeito de um livro é uma postura digna de respeito, mas ler, ver os problemas e sair elogiando a obra, já é atitude totalmente reprochável. Pelo menos, por tudo o que aprendemos com Allan Kardec, na busca da Fé raciocinada.

Capítulo 13 – Pombal e os jesuítas

                Neste capítulo, os jesuítas são chamados de “missionários”; “humildes” e pertencentes à “célebre” ordem, sempre no intuito de valorizá-los, caracterizando a utilização de elogios exagerados e repetitivos, muitas vezes sem respaldo nos fatos, o que acontece em todo o livro, como os leitores podem observar nos diversos capítulos. Vejamos, portanto, o seguinte capítulo, presente na página 98:

p.98 “Os missionários humildes da célebre Companhia, radicados no Brasil, diga-se em honra da verdade, estavam muito longe das criminosas disputas em que se empenhavam seus irmãos no outro lado do Atlântico; mas sofreram com eles a incessante perseguição, tão logo se apossou do governo o famoso Ministro”.
               
                O interessante é que essa adjetivação excessiva é focada em primeiro lugar no catolicismo e nos padres católicos, sobretudo nos jesuítas, e, em segundo lugar, em um “ufanismo” luso-brasileiro. De fato, no segundo parágrafo subsequente a esse último citado, referente à página 98, portanto na página 99, o texto refere-se ao Marquês de Pombal (figura importantíssima na História luso-brasileira), sem nenhum tipo de adjetivo ou elogio. Vejamos:

p.99 “Pombal aproveita o ensejo que se lhe oferece para justificar a expulsão dos jesuítas, apontando-os como autores indiretos do atentado e D. José I, a instâncias do seu valido, assina sem hesitar o decreto de banimento”.

                Agora, prestemos atenção na confissão que o texto faz sobre a atitude dos padres frente à escravidão para avaliarmos se eles mereciam todos os elogios registrados, sobretudo aqueles referentes às suas atitudes com relação aos escravos. Por outro lado, quando não dá para elogiar toda a Igreja, pelo menos os jesuítas são elogiados.


p.99 “... O clero comum possuía escravos numerosos e chegava a defender o suposto direito dos escravagistas, incentivando a caça aos índios e abençoando a carga misérrima dos navios negreiros. Os jesuítas, porém, sempre trabalharam, no início da organização brasileira, dentro dos mais amplos sentimentos de humanidade.”

                Esta informação contradiz aquela do capítulo 12, p. 95, que pretendia dizer que a igreja não apoiava a escravidão, ou que tentava amenizá-la.

                Na página seguinte (p.100), o Marquês de Pombal, conhecido inimigo dos jesuítas é, agora sim, adjetivado mui negativamente. Por outro lado, os jesuítas são elogiados novamente. Vejamos a passagem da página 100:

p.100 “A esse tempo, observando a anulação dos seus esforços, os missionários humildes da cruz procuraram Ismael com instantes apelos. Seus trabalhos eram abandonados, por força das determinações do Ministro arbitrário”.

                Portanto, o texto, de forma incansável, elogia os jesuítas considerando-os “os missionários humildes da cruz”, criticando o Marquês de Pombal, por ser claramente anti-jesuíta, chamando-o de “Ministro arbitrário”. O curioso é que mesmo entre muitos católicos praticantes, conhecedores das diferentes ordens da Igreja Católica Apostólica Romana, os jesuítas não gozam de tanto prestígio assim.
                Resta perguntar aos Espíritas Militantes, muitos com cargos e encargos de liderança no Movimento Espírita, qual é o objetivo de fazer uma divulgação, com profunda apologia a essa obra. Alguns poderiam afirmar tratar-se de respeito a Chico Xavier e Humberto de Campos, o que, para nós não se trata de justificativa de nenhuma forma plausível. As demais obras de ambos (Chico Xavier e Humberto de Campos), não apresentam, de forma nenhuma, tamanho número de colocações tão “estranhas” espiriticamente falando e a maioria delas, sobretudo as de Humberto de Campos, não recebe nem ínfima parcela de divulgação quando comparada à divulgação de “Brasil, Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”. De fato, até cursos de “Ensino à distância” (EaD) têm sido promovidos para divulgar tal obra por instituição que lidera o Movimento Espírita Brasileiro.
                Sem ter a vaidosa e infantil pretensão de que esse pequeno trabalho esgote a questão e que esteja isento de eventuais equívocos, cabe uma pergunta muito objetiva: As várias questionáveis colocações presentes no livro “Brasil, coração...”, em quase todos os capítulos, registradas no presente artigo, seriam, todas elas, equívocos de interpretação? Ainda não chegamos à metade do livro, e podemos perguntar a nós mesmos: as supracitadas passagens não são suficientes para, ao menos, questionarmos, respeitosa, porém seriamente, essa obra? Será que, em uma busca consciente em direção à pureza e à coerência doutrinárias, tal obra é aprovada segundo os critérios de Erasto e Kardec? E, o que é pior, é minimamente explicável e/ou justificável ser “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, uma das obras mais divulgadas do Movimento Espírita Brasileiro?

Capítulo 14 – A Inconfidência Mineira
                Na página 107, a questionável e demasiadamente adjetivada saga continua, narrando o recebimento no mundo espiritual de Tiradentes por parte do Espírito Ismael:

p.107 “...Mas, nesse momento, Ismael recebia em seus braços carinhosos e fraternais a alma edificada do mártir.
                -- Irmão querido – exclama ele ---, resgatas hoje os delitos cruéis que cometeste quando te ocupavas do nefando mister de inquisidor, nos tempos passados”.
               
                Em primeiro lugar, de forma já um pouco cansativa, o texto reforça o “valor de Ismael”, enfatizando “seus braços carinhosos e fraternais”. Além disso, por mais que Tiradentes tenha tido uma atitude heroica no julgamento dos inconfidentes, se ele, conforme o texto assevera, se ocupava “do nefando mister de inquisidor, nos tempos passados”, sendo que a Inquisição foi processo histórico que começou no segundo milênio, será que podemos aceitar como correta a afirmação “a alma edificada do mártir”?! Em que pese que a Inconfidência Mineira tinha significativo nível de idealismo, não seríamos ingênuos de admitir que somente o idealismo superior motivava os inconfidentes. Se Tiradentes realmente se ocupava, como o texto afirma, “do nefando mister de inquisidor, nos tempos passados”, sendo que esses tempos não eram tão antigos assim, pensando no processo de evolução espiritual como um todo (o qual, mui frequentemente, requer várias reencarnações para uma transformação substancial do Espírito que se encontra em plano de provas e expiações), será que o “mártir” já era uma “alma edificada”? O texto em questão não responde a essa questão, como não responde a várias outras, pois é pobre doutrinariamente. Realmente, não esclarece suas muito questionáveis afirmativas, as quais são estabelecidas e repetidas à exaustão como verdades praticamente inquestionáveis.
                Para dizer o mínimo, causa espanto um Espírito protetor dizer a um Espírito recém chegado ao Plano Espiritual — depois de morte bárbara — que ele foi inquisidor... Tiradentes evoluiu tanto assim, de um tempo ao outro, para ter suporte de receber tão gravosa notícia, com o agravante de estar sob natural perturbação gerada por tal processo de desencarnação?

                Na página 107, o texto registra a famosa atuação de D. Maria I concernente aos inconfidentes:

p.107 “...D. Maria I havia comutado anteriormente as penas de morte em perpétuo degredo nas desoladas regiões africanas, com exceção do Tiradentes, que teria de morrer na forca, conservando-se o cadáver insepulto e esquartejado, como exemplo para quantos urdissem novas traições à coroa portuguesa”.

                A essa altura do texto, o ufanismo luso-brasileiro de “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho” começa a ficar contraditório, pois, com o crescimento do desejo de emancipação do Brasil, os interesses do povo brasileiro passam a divergir fortemente em relação às aspirações do povo português e de sua corte. A triste decisão de D. Maria I definir as penas de “perpétuo degredo nas desoladas regiões africanas” para a grande maioria do grupo de inconfidentes e, principalmente, a condenação de Tiradentes “que teria de morrer na forca, conservando-se o cadáver insepulto e esquartejado, como exemplo para quantos urdissem novas traições à coroa portuguesa” ilustram muito bem essa situação. Vale lembrar que manter o “cadáver insepulto e esquartejado” nessa época era uma atitude profundamente cruel, em função da cultura religiosa da época.
                Então, Tiradentes “...teria de morrer na forca, conservando-se o cadáver insepulto e esquartejado, como exemplo para quantos urdissem novas traições à coroa portuguesa”. De fato, D. Maria I, por essa e outras, foi adjetivada D. Maria “Louca”, mas o texto em um processo um tanto quanto paradoxal de tentar exaltar tanto os portugueses como os brasileiros, mesmo que ambos os grupos já estivessem à essa altura dos acontecimentos em lados totalmente opostos, ainda se arrisca a caracterizar D. Maria I (de forma muito questionável...), logo na página seguinte (p.108), de “...a piedosa rainha portuguesa...”. Observemos o texto:
 p. 108 “...a piedosa rainha portuguesa enlouquecia, ferida de morte na sua consciência pelos remorsos pungentes que a dilaceravam...”. Podemos até admitir o “remorso”, mas “piedosa”? Será que as famílias e amigos de Tiradentes, além de todos os inconfidentes condenados à “perpétuo degredo”, concordariam com essa caracterização?


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