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sexta-feira, 17 de maio de 2013

É DE MARCA!


Margarida Azevedo


Margarida Azevedo
Mem Martins, Sintra, Portugal



Os nossos vãos pensamentos, construtores das mais ignotas dependências, elaboram escalas de valores que nos espartilham a razão e fragilizam os gostos.

Já ninguém veste roupa, veste marcas; já não se lê um livro, mas só o autor. Até o bacalhau é de marca e os perus, e tudo o que de mais perfumado e saboroso que este planeta azul produza.

É uma luta titânica contra a liberdade, bastante nociva nestes casos, acrescente-se. Aquele criador ou autor é tão fantástico que marca com a sua marca toda uma franja da humanidade que se torna a sua fiel seguidora. A marca é um partido, uma religião, um culto, um modo de consumo, até uma forma de dizer quem se é. Tudo o que deles vier é sempre bom, porque é deles, tem o seu cunho, o símbolo da tribo. 

Deus não faria melhor. Ninguém pergunta porque é que a marca tem este ou aquele corte, aquelas cores, mas toda a gente se interroga porque é que Deus fez o mundo assim; a ninguém passa pela cabeça dizer que a marca está mal e que podia ser diferente, mas toda a gente diz que este mundo tem incongruências e que podia ser de outro modo; ninguém quer fazer má figura por causa de uma coisa tão simples como é a roupinha, mas não há semelhante preocupação em matéria de carácter.

Ninguém discute quem fez a marca, porque esse é um ser que está acima de toda a controvérsia. Foi ele que contribuiu para grandes momentos de felicidade, tais como socialização, pertença a um grupo, respeitinho devido ao logótipo, isto é, o bicho que está bordado no peito, na perna, na nádega, ou simplesmente pendurado nas orelhas ou no umbigo. Mas toda a gente discute Deus, os Seus poderes, os Seus desígnios, as Suas decisões. Deus só traz infelicidade. Para que serve ser bom? Para ser tido como pacóvio, tolinho, ingénuo. A marca traz status, impõe uma presença impondo-se ela mesma. Usá-la ou exibi-la é pertencer-lhe, pois toda a gente fica inteirada de que faz parte daquele clã. Pelo contrário, pertencer a Deus não tem cor, paladar ou aspecto, nem consta que do Seu Reino desçam até nós, simples mortais, os celestiais criadores de moda. 

As marcas são representadas por animais, na sua maioria, ou então por uma figura fantasiosa, imaginária. São o expoente máximo de até onde pode ir o poder imenso da criatividade. Por isso são cultuadas no ritual eterno da ida à loja chique, que é sempre relativa à bolsa do comprador. Deus não. Não Lhe passou pela cabeça dependurar a pata de um bicho qualquer nos algodoeiros. A perfeição da marca está muito para além da imperfeição do mundo criado por Deus. 

Quando o indivíduo deixa de passar despercebido e é identificado segundo a marca que usa, torna-se importante, tal como identificar-se com uma religião ou igreja quaisquer. Deixa de ser um homem, passa a ser uma testemunha de Jeová, ou deixa de ser uma mulher e passa a ser uma espírita. Com a marca passa a ter pedigree, uma espécie de pureza de raça paga ao preço da idiotia. E a idiotia é o que mais vende neste mundo. Mas se aderir a uma religião ou igreja pela via do empenhamento, do desejo de modificação interior, auto-análise, projecto de vida, então candidata-se a ser perseguido, até pelos dele. Mas se fizer pior, seguir a Deus sem igreja nenhuma, a situação superlativiza-se. A religião ou igreja rotulam, não há dúvida, o que parece fazer muita falta, porém não tanto nem tão bem como a marca da vestimenta ou do adereço. É que primeiro comem os olhos, e andar de argola no nariz não é para qualquer um. Há que ter classe. Só depois afluem as problemáticas da fé, as snobeiras da ética, os retiros espirituais com os seus momentos místicos de grandes experiências transcendentais, os aléns, os outros mundos, a vida na Lua ou em Marte … 

Por outro lado, a agressividade e violência que encontramos no mundo, sobretudo na manutenção das espécies que se devoram entre si, a maldade humana, o misto de beleza e perfeição no meio de tantas irregularidades, põem em causa o estatuto desse Deus supremamente bom; porém, a marca vem repor a ordem paradisíaca com um toque de sedução. 

Mas estes deuses não são novos, apenas novas apresentações do miticismo da mente humana quando elevada ao expoente da mediocridade, do fanatismo e da idolatria. Eles são a continuidade de algo muito antigo, a saber, a dependência do ser humano de tudo o que lhe é inferior e aprisionante, só que agora de uma forma que envergonha as suas origens. Os deuses traziam sabedoria, norma, regra, lei. Visavam repor uma ordem perdida pelo desvio das ambições dos homens/mulheres, resolver problemas familiares e sociais… Consultar a pitonisa exigia preparação, recolhimento, compreender a linguagem codificada dos deuses; esta, por sua vez, possuía o dom da comunicação aquando de um êxtase muito peculiar.

Ora, a marca tornou-se uma empobrecida face do logos, poderíamos dizer sem receios do ridículo. É um empobrecimento da linguagem, uma redução do seu campo de forças, uma materialização. É a voz da ambição outrora combatida. A palavra já não é um murmúrio do inefável libertador na procura de justiça, mas a imposição artificial à ordem que subjaz a todas as coisas, violentamente. A própria religiosidade perdeu o sentido do sagrado, profanizou-se, temporalizou-se. Torna-se urgente retomar a procura do sagrado, encarar este mundo como um caminho para os mundos, as pátrias dos justos, dos felizes, dos livres.

A fama é o vil carrasco dos tempos que correm. Que correm, dizemos bem, pois ela é veloz e efémera. Mas ninguém quer saber. É tão bom ser diva por dois segundos de vida, muito melhor que ser bom na eternidade de uma existência. 

Perante tão doloroso espectáculo, a novidade continua a ser um alvo a abater, pela ausência de nome, ou pela inaceitável sonoridade do mesmo, pelo rosto que desagrada ou pelos contornos nada convencionais dos gestos ou das palavras.

O Espiritismo não foge à regra. Muito pelo contrário. Diríamos que há um registo bioespiritual, biopsíquico ou biofísico (deixamos à consideração de quem lê estas linhas a escolha do vocábulo mais apropriado; quanto a nós, detestamos qualquer um deles) que, mercê de um processo complexo de estagnação que ninguém consegue definir, “programou” uma multidão de espíritas para que estes só aceitem o produto das marcas. Como?
Se num jardim há quem prefira os amores-perfeitos em detrimento dos malmequeres, num universo de visitantes que preferem os últimos aos primeiros, temos o que se pode chamar o caldo entornado. E se os “partidários” dos amores-perfeitos criticarem, por alguma razão, os malmequeres, então temos a guerra.

Numa linguagem espírita fica assim: se num Centro há quem prefira Kardec, em detrimento de F. C. Xavier, num universo dos que preferem o último ao primeiro, então a coisa está preta. E se os “partidários” de Kardec criticarem, por alguma razão, os de F. C. Xavier, então é baixo astral. Parece que ninguém quer compreender que um jardim, para ser jardim, tem que ter muitas flores.

Precisamos de uma noção de complementaridade. Alguns ainda não perceberam que estamos incompletos, inacabados, que temos muito por fazer. Denunciar o que está errado é tarefa de quem quer crescer. E ainda que a ignorância seja do tamanho do Universo, a intenção já vale o esforço. Pelo menos sempre se vão enfraquecendo algumas negatividades, o que já não está mal.

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