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quinta-feira, 2 de junho de 2011

ESPÍRITO NÃO TEM COR



Marcus Vinicius de Azevedo Braga



Comentário a nota em :


http://www.conjur.com.br/2011-mai-31/livro-espirita-allan-kardec-nao-recolhido-decide-juiz-federal

O corpo sim....Assim como a máxima "espírito não tem sexo" oculta várias discussões sobre sexualidade e gênero e a máxima "espírito não tem idade" desconsidera questões sociais da juventude e da infância, a máxima título desse texto acaba por servir ao mesmo propósito. Abstrair a questão do espírito, como uma coisa neutra, amorfa, quase um anjo etéreo é perigoso. A grande inovação da obra Nosso Lar de Francisco Cândido Xavier foi mostrar a vida espiritual em um plano concreto, real.O espírito e a matéria não são coisas isoladas, pois na vida encarnada o espírito se relaciona diretamente com o mundo material, não em uma oposição, mas em uma relação complexa e orgânica.
Esse intróito é para mostrar que a questão do racismo, atualmente em ampla discussão por força da questão das cotas das universidades e de outras questões correlatas, também merece uma discussão no campo do espiritismo. O racismo, o preconceito, as guerras por razões étnicas são construções sociais de processos históricos longos e dolorosos. O nosso país vivenciou séculos de escravidão, em um processo de libertação dos escravos que não foi acompanhado de uma integração dessa massa de indivíduos, relegando a eles a pobreza e a discriminação pelas suas práticas culturais, tendo sido perseguidas pela polícia a capoeira e as religiões de matrizes africanas.
Impossível negar essa realidade. A cor da pele representou e representa forma de dominação de de superioridade entre pessoas, em assim como foram as construções religiosas que movimentaram e movimentam guerras.


Sobre o assunto da decisão do juiz denegando o recolhimento de Obras Póstumas, vejo que a decisão do Juiz Federal foi sábia. Essa questão, infelizmente, não é tão simples...O Racismo está presente sim em várias obras literárias, por ser uma situação que foi aceita e estimulada pelo senso comum, inclusive em nosso país, desde longa data. Não é a primeira vez que uma obra clássica é arrolada nessa situação, como em :
http://www.diggs.com.br/clipping/o-caso-do-caso-dos-dez-negrinhos/ e mesmo a recente do Monteiro Lobato, onde repasso interessante Nota do CNE sobre a questão, com um posicionamento bem coerente. Vale a pena a leitura...
Não podemos varrer essa questão para baixo do tapete. Sobre isso, vale a leitura de interessante artigo de nosso amigo Jorge Hessen:
http://orebate-jorgehessen.blogspot.com/2009/03/kardec-racismo-e-espiritismo-uma.html
Obviamente, essas assertivas não desmerecem a figura de Allan Kardec, que pregou em seus textos a igualdade. Mas, não podemos nos esquecer que Kardec era um ser humano, um homem do seu tempo, imerso em um contexto social. Sair disso, é procurar santos encarnados.


Se julgássemos as obras básicas livros sagrados e imutáveis, escritas por seres atemporais e perfeitos, seríamos católicos e não espíritas. Kardec vivia em uma sociedade com valores e com uma visão de mundo e isso obviamente se expressa nos seus comentários. A afirmativa na Revista Espírita", em outubro de 1861, é esclarecedora na questão de taxar o Codificador como racista:
"O Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor."
Considerando-se ainda trechos das obras básicas reforçam o combate ao racismo:
"Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade". (A Gênese).

Ou ainda no Evangelho Segundo o Espiritismo, no texto "O Homem de bem", quando diz: "O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus".
Essa questão se o pensamento de Kardec no século XIX tinha traços de racismo no século XXI é inócua, principalmente por não ser esse para nós um profeta infalível, considerando que o espiritismo superou esse modelo beatrificador. Kardec era um homem de seu temo e que rompeu com vários modelos daquela época. O que não pode, e essa é a questão central desse texto, somos nós espíritas, por qualquer motivo, sustentarmos práticas que inferiorizem indivíduos pela cor da sua pele e ignorar que essa discriminação é um fato vivo, social e construído, ocultando-se na neutralidade de um espírito sem cor.

A questão do racismo deve ser pauta de nossos estudos, das discussões da juventude e deve ser entendida como uma expressão do orgulho. O espiritismo deve apregoar a compreensão entre as manifestações culturais e religiosas, dentro da visão que não serão essas questões que nos serão "cobradas" no retorno a espiritualidade.
Confesso que o momento atual é de exaltação e que algumas manifestações soam agressivas quanto a questão do racismo. Mas, é normal por ser uma questão da pauta nacional e que envolve um processo de segregação e de dor arrastado por gerações. Mas, isso não nos exime da questão do preconceito, lembrando que a luta contra o racismo é a luta contra as diferenças e não a construção de diferenças.

Por fim, longe de esgotar o assunto, que visivelmente carece de produção literária na seara espírita, fica a questão de revisarmos a nossa vivência, o nosso discurso e acharmos ali o racismo escondido, essa visão não-universalista do mundo e das pessoas. Esconder-se dessa questão, jamais....

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