Margarida Azevedo
Mem Martins, Sintra, Portugal
“Passado, presente ou futuro, tanto faz.
Somos todos prisioneiros dum tempo qualquer.”
Miguel Torga, O Paraíso
A reencarnação é para muitos uma forma de tentar reviver um passado que, julgam, sedimenta, de algum modo, uma identidade que receiam perder. De facto, o fim da vida, o terminus de uma passagem curta sobre a terra, não pode ser de forma alguma o fim da memória, a perda total de sentido.
A morte é assim um reingresso numa continuidade que foi, momentaneamente, interrompida, mercê de uma necessidade que se impõe como processo catártico. O esquecimento que tal processo implica torna-se uma espécie de paraíso perdido. O ser humano não gosta de esquecer quando isso significa esquecer-se. É que, se a complexidade da vida presente é uma projecção para um futuro glorioso, esquecer o passado é tornar redutível toda uma existência a um presente fugaz, abreviação de milénios de vida.
É facto que a nossa estrutura psicológica não suporta o anonimato. A própria Doutrina espírita não vai contra essa realidade intrínseca à natureza do ser humano. O eu nunca se perde, pelo contrário, a cada existência ganha mais individualidade, isto é, evidencia-se, particulariza-se. Contudo, esse passado não é capaz, por si só, de conferir individualidade. Cabe ao presente essa tarefa.
Assim, é um erro procurar no passado o eu perdido, esquecido. Ele será sempre ignorado pelo presente, que não tem capacidade para o desvendar. No entanto, não deixa de ser curiosa esta atracção pelo passado, ainda que se diga que foi pior que o presente, vil, trevoso, sangrento, e todas as demais congéneres qualificações que lhe queiramos imprimir.
Porém, a questão é mais específica. Não se trata apenas da temeridade de cair num presente desenraizado, mas de lhe conferir uma singular debilidade de tal forma que a procura do passado se apresenta como uma luta pela raiz profunda, fundamento de elementos identitários que o presente não é capaz de conferir. Por outras palavras, o presente é frágil, insatisfatório, insuficiente, parco e, não raro, rejeitado porque demasiado fugaz. Em suma, não devemos procurar o passado, não somos capazes de viver um presente total, isto é, não estamos preparados para viver cem por cento o presente.
Por mais que a Doutrina ensine, peremptoriamente, que o passado está adormecido e, como tal, há que não pensar nele, a realidade vivencial remete para o incumprimento dessa máxima à qual se sobrepõe com veemência a temeridade de cair no anonimato. Mais, afirmar que o passado está adormecido não significa que esteja ausente; afirmar que o presente se constitui em prolongamento do passado é trazê-lo, de alguma forma, ao presente. Como exigir que ele seja ignorado? Olvidado? Nós dizemos que é praticamente impossível.
Não temos nenhuma garantia de que o que está em latência não se torne consciente. Não somos herdeiros de uma casa arrumada. O tempo antigo e o lugar confuso de onde somos oriundos não raro trazem à superfície comportamentos que nos são estranhos, face à estrutura do presente. Donde provêm os pensamentos impetuosos que conduzem a actos espantosamente inesperados, de onde emergem os pensamentos que não foram aprendidos, os cálculos e os raciocínios que não foram matéria dos bancos de escola?
Esse é o lado que desoculta pequeníssimos traços, laivos indeléveis do pretérito que, na ânsia de ir mais longe, são abordados como fenómenos transcendentes. Mas isso não pode implicar a sua procura, uma espécie de renascimento constante, revivência sem parar. A Doutrina ensina que é nocivo porque perturbador, causador de distúrbios de toda a ordem. Há que deixar que esses fenómenos aconteçam pois, seja qual for a sua espectacularidade, emergem na real dimensão da necessidade de novas contextualidades.
O passado não pode ser transformado em presente contínuo num artificialismo do presente. O passado só poderá ser fundamento para o presente quando for esquecido, desprezado. As próprias marcas por ele deixadas são, elas mesmas, para ter em pouca conta.
A viver na imensidade de problemas, o ser humano depara-se a par e passo com a sua limitude, despreza a ausência de justificações. Viver tem sido ao longo dos séculos a procura incessante das primeiras causas e dos primeiros princípios, já Aristóteles dizia que a filosofia é a ciência dessas causas e desses princípios. Somos pesquisadores da nossa mesma arquê. Os seres humanos não passam de arqueólogos à procura dos seus arquétipos, os seus paradigmas.
O interessante é que, por mais que se diga que o passado é sempre mais tenebroso que o presente, o certo é que ele foi sempre atractivo. Por meio dele, a individualidade perde o anonimato, assim parece, assim pensam alguns.
Há uma preocupação colectiva em saber quem foi no passado, de tal forma que este surge numa perseguição aprisionadora, impeditiva de viver o presente em plenitude.
Ora, esquecer o passado não é viver anonimamente, mas salvaguardar a lucidez que o presente impõe e desfrutar dele como saudável pedagogia. O anónimo deixa de o ser na medida em que conseguir impor o bem a cada nova existência. O bem conhece todos os seus agentes, todos os que trabalham ao seu serviço. A reencarnação é uma superação, temos que a entender como tal, e o pretérito é um tempo que não definimos.
Bibliografia
TORGA, Miguel, O Paraíso, (Farsa), Coimbra Editores, Coimbra, 1977, p.119.
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