João Xavier de Almeida
Portugal, Gaia, 16/9/2018
O artigo de abertura do último Boletim Informativo da ACEMI, nº 129, (O grito mais trágico que marcou o Ocidente), é fértil em passagens cruciais, ricas de sentido. Uma delas afirma: “com Jesus, a vulnerabilidade sobe ao estatuto de caminho directo para Deus. A cruz é libertadora”; uma outra alude ao Salmo 22, composto mais de meio milénio antes da paixão e morte do Messias. Concordo com Margarida Azevedo, a autora, que o famoso brado na cruz não foi de revolta; e vou mais longe: não me parece um assomo de vulnerabilidade, um queixume. Sempre cônscio de si, o Cordeiro fidelíssimo NUNCA SE SENTIU ABANDONADO PELO PAI, mormente ao consumar-se um desígnio superior de ambos: o drama da Paixão. Por outro lado, o indizível Pai Criador, omnipresente a toda a efeméride em qualquer recanto do Universo, por sua natureza toda amor não abandonaria um filho (como bem diz outra profunda frase do artigo).
Conforme o teor, os biblistas classificam os salmos como doxológicos ou de louvor, precatórios, penitenciais… e proféticos, ou messiânicos. O salmo 22, nitidamente profético, refere com antecedência plurissecular minúcias da Paixão do Messias; logo o 1º versículo prediz algo que, ao olhar humano, parece o abandono trágico bradado pelo Cordeiro; adiante, o salmo alude aos seus ossos incólumes (diferindo dos dois companheiros de suplício, cujas pernas foram fraturadas pelos executores, como era costume); e prediz o sorteio das vestes do Mártir sublime, como também sucedeu.
Familiarizado com os Textos Sagrados, o Divino Amigo mencionava-os amiúde no seu ministério. O brado antes de expirar (longe de um lamento de Quem nunca se queixou de ingratidão e injustiças que sofreu), só podia ser uma citação deliberada e intencional do Salmo 22, versículo 1º: “Pai, Pai, porque me abandonaste”.
Com o dramático brado reboando pelos milénios, o Rabi adorável reafirmava-se o Messias prometido, chancelava solenemente a grandiosa missão cumprida: SOU EU, AQUELE QUE AS ESCRITURAS ANUNCIARAM durante séculos.
Queixume, vulnerabilidade, sensação de abandono? Parece improvável: momentos antes, o divino agonizante, lúcido e tocado pela pureza límpida de Dimas arrependido, confortou-o com palavras de força e segurança: Hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Nem esqueçamos: o Cordeiro sem mácula de defeção, despreocupado de defender-se perante Caifás, Herodes, Pilatos, tinha poder para os neutralizar a todos, mais a tropa romana e a turba desvairada. Poder sem ostentação nem espalhafato, que horas antes exercera tranquilamente, ao ser preso; e não para se defender, antes para proteger Pedro e os outros discípulos. Recordemos:
O Bom Pastor prescindiu da generosa defesa de Pedro, mandou-o embainhar a espada com que ferira o soldado Malco. A narrativa evangélica não refere a mínima reação dos soldados contra o precipitado discípulo e seus companheiros: facto espantoso, quando o normal seria a orgulhosa tropa romana reagir brutalmente, sem dó nem piedade. Como ocorreu semelhante prodígio, senão pelo poder ilimitado, pacífico, nada ostensivo, do Bom Pastor cioso de proteger as suas ovelhas?
Com sincero apreço pelo artigo de Margarida Azevedo, trago a diálogo fraterno estas considerações. Cordiais saudações para a prezada confreira e para o prestimoso Boletim Informativo “on line” da ACEMI (http://acemi.pt), cujas páginas acolheram uma questão de tanta relevância e tão pouco examinada entre nós.
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